Agência Primaz-Ano 6

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Hoje é sábado, 27 de abril de 2024

Saúde mental e transtornos psicológicos: como o assunto é tratado no ambiente universitário?

Dificuldades enfrentadas segundo visão dos alunos, apoio dos professores, medidas e projetos da Universidade Federal de Ouro Preto

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Prédios do Instituto de Ci~encias Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana, Minas Gerais
Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em Mariana – Foto: Sarah Couto
Nesta reportagem, investiguei a presença das dificuldades psicossociais dentro da Universidade Federal de Ouro Preto: a visão dos alunos, o apoio dos professores, as medidas e projetos da universidade sobre o tema saúde mental e transtornos psicológicos, e o que ainda precisa ser feito para derrubar as barreiras que impedem a experiência saudável e plena de boa parte dos estudantes na universidade federal.

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“‘Pra mim’, a pior parte do TDAH é a dissociação. Muitos momentos da minha vida eu passei sentindo que não estava vivendo junto com as pessoas, porque eu realmente não estava”. A fala é da estudante de Jornalismo Maria Eduarda Gomes, de 18 anos, que, como muitos outros estudantes, possui Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH).

“Eu tenho uma sensação constante que as coisas vão dar errado, não posso ter um movimento em falso que aquilo vai me levar a um caminho muito ruim, estou sempre preocupada demais.” (Maria Eduarda Gomes)

O termo ‘psicossocial’ se baseia na relação entre características individuais da psique e as necessidades e convivências sociais. De forma mais ampla, o conceito se relaciona com a ideia de qualidade de vida, experiências e perspectivas pessoais. Nesse sentido, segundo o artigo Ação psicológica em saúde mental, uma barreira psicossocial descreve desde dificuldades organizacionais e de relacionamento enfrentadas por cada um, até transtornos e doenças diagnosticadas como a depressão, ansiedade e o TDAH.

A estudante de Pedagogia Lívia Abreu de Assis, de 21 anos, pontua: “Você cresce acreditando que é culpa de uma incapacidade e falta de caráter sua. Às vezes você só se dá conta disso muitos anos depois, devido à ausência de diagnóstico ou à falta de acesso a acompanhamento/tratamento. Ou a simplesmente à própria realização e aceitação da situação”.

O que é Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)?

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade é um transtorno psicossocial que afeta pessoas de todas as idades. Segundo a Associação Brasileira de Déficit de Atenção, os adultos com o transtorno tendem a ter dificuldade na organização e planejamento do dia a dia. Por não saberem o que priorizar, acabam se sobrecarregando e tendo de lidar com um estresse extremo após deixar tudo para depois. O desgaste mental é maior devido ao fato de a cabeça não parar um segundo, sempre se atentando a coisas diferentes.

Em âmbito legislativo, o mais próximo que há de uma defesa e atenção à saúde psicossocial brasileira é o Projeto de Lei 2630/2021 que atualmente tramita na Câmara dos Deputados e institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Porém, “o transtorno ainda é muito banalizado e visto de forma muito superficial, atribuído muitas vezes como falta de disciplina e organização ou preguiça da parte da pessoa afetada, acabando por culpar ela por algo que foge de seu próprio controle”, diz Lívia Abreu.

Segundo a estudante de História Ana Maria Oliveira Leite, de 19 anos, existem dois momentos distintos dentro do TDAH. Antes do diagnóstico, a pessoa sente que “o problema é comigo, é porque eu sou preguiçosa, o problema ‘tá’ em mim. Depois do diagnóstico, é quando a gente entende. É como se abrisse um universo”.

Ana Maria pontuou ser comum pessoas com TDAH possuírem também outros transtornos, como é o seu caso, que possui ansiedade e depressão. Também admitiu ter Transtorno Borderline e episódios depressivos de tempos em tempos. Dentre as três entrevistadas, Lívia é a única que tem acompanhamento frequente e dosagem de remédios. Ela possui diagnósticos de síndrome do pânico, transtorno de ansiedade generalizada e fenótipo ampliado do transtorno do espectro autista.

O Transtorno do Espectro Autista (TEA)

É um transtorno do neurodesenvolvimento que possui duas características principais, que podem se manifestar em conjunto ou isoladamente. A primeira é a dificuldade na comunicação e interação social, e a segunda o padrão de comportamento restritivo e repetitivo. Porém, o transtorno nem sempre se manifesta de forma grave. Embora os sinais possam se apresentar de diversas maneiras, os casos leves muitas vezes não necessitam de suporte, e os moderados requerem assistência apenas em atividades específicas.

Indivíduos com Transtorno do Espectro Autista possuem proteção de direitos assegurados pela Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012, que considera a pessoa autista como pessoa com deficiência para todos os efeitos legais. Desde 2016, pessoas com TEA podem ingressar na universidade federal não apenas na categoria de Ampla Concorrência como também através da Lei de Cotas, devido à Lei nº 13.409.

É nesse contexto que a Coordenadoria de Acessibilidade e Inclusão – anteriormente Núcleo de Educação Inclusiva (NEI) – é importante. O departamento tem como objetivo apoiar alunos e servidores da UFOP que apresentem qualquer tipo de deficiência. Conversei com o coordenador do departamento, Marcelo Santana, de 37 anos, mestre em Educação e tradutor e intérprete de libras na UFOP.

“‘Pras’ questões do Autismo e para política de ingresso desses alunos (autistas) na UFOP eu acredito que há barreiras que precisam ser vencidas. Embora também acredito que muita coisa já conseguimos vencer.” (Marcelo Santana)

Marcelo assumiu o cargo de coordenador em 2019. Em nossa conversa ele pontuou como a pandemia de Covid-19 foi um período difícil para todos os alunos, mas especialmente para aqueles com algum tipo de deficiência.

Marcelo ressalta que aumentou a procura por auxílio do NEI durante o isolamento. “Alunos que a gente nem sonhava ou tinha conhecimento. Essa procura aumentou consideravelmente, tanto que atualmente é uma das nossas preocupações, porque agora, presencialmente, conseguimos ver mais pessoas que não utilizavam (o auxílio do NEI) e que com certeza vão continuar utilizando”.

Qual o papel da Universidade?

Conversei também com o professor de Saúde Coletiva da Escola de Medicina da UFOP, Aisllan Diego de Assis. Formado em enfermagem psiquiátrica pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Aisllan desenvolve pesquisas sobre políticas e práticas de saúde mental e acolhimento aos estudantes universitários, especialmente de populações e grupos vulneráveis.

Sobre a política de assistência estudantil da instituição, ele comenta: “A política é prevista para dar um apoio a esse estudante. Ele tem seus tratamentos, suas necessidades e as suas carências ou as suas insuficiências – ou até suas deficiências, pois temos uma linha programática ‘pras’ pessoas com deficiência – mas de maneira alguma a universidade consegue substituir, por exemplo, o tratamento que a pessoa precisa e que tem que ser feito em outras instituições como o SUS”.

Aisllan acrescenta que “as universidades, principalmente as públicas, são obrigadas a dispor de serviços de saúde mental, apoio psicológico e atenção psicossocial. Entretanto a universidade entra nessa trama do cuidado através do apoio psicossocial e do apoio psicopedagógico”. Na UFOP, esse apoio psicológico ocorre através do projeto Portas Abertas, um espaço de escuta e acolhimento individual desenvolvido por psicólogos da Coordenadoria de Saúde da Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Estudantis (Prace) e dos Núcleos de Assistência Estudantil (Naces).

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Projeto ABRACE

Cartaz de divulgação do Grupo de Acolhimento e Cuidado ao Estudante, projeto Abrace, tendo ao fundo o prédio do Curso de Medicina da Universidade Federal de Ouro Preto
Projeto ABRACE – Foto: Divulgação/UFOP

Durante a entrevista, Aisllan mencionou duas coisas que chamaram sua atenção logo que chegou à UFOP, cinco anos atrás. A primeira é que, em comparação às outras cinco universidades que já havia frequentado, as políticas, ações e serviços da assistência estudantil eram, e são, bastante completos em questão de diversidade programática e do conjunto de profissionais responsáveis por tocar os programas de bolsa e assistência psicológica.

“É admirável a composição da política e assistência estudantil da Universidade Federal de Ouro Preto” (Aisllan Diego de Assis)

Em contrapartida, a segunda coisa percebida pelo professor foi a quase nenhuma oferta de atividades grupais e coletivas que utilizem a convivência entre os estudantes como forma de apoio psicossocial. O mais próximo de apoio grupal, segundo Aisllan, seria o sistema de moradia em repúblicas bastante presente na cidade.

Em decorrência disto, junto de outros professores, Aisllan resolveu fundar o Grupo de Acolhimento e Cuidado dos Estudantes da UFOP (ABRACE), um projeto desenvolvido no âmbito do Programa de Diversidade e Convivência da UFOP (PIDIC) e coordenado pela Prace. Os encontros do ABRACE são realizados desde abril de 2019 e têm como objetivo criar espaço para discussão de aspectos da vida universitária de modo geral. Em artigo escrito pelos fundadores, o projeto é descrito como “um grupo terapêutico aberto, articulado por meio de técnicas grupais voltadas para a escuta, ajuda mútua e apoio psicossocial dos participantes”.

Falta de informação

Em contrapartida, a segunda coisa percebida pelo professor foi a quase nenhuma oferta de atividades grupais e coletivas que utilizem a convivência entre os estudantes como forma de apoio psicossocial. O mais próximo de apoio grupal, segundo Aisllan, seria o sistema de moradia em repúblicas bastante presente na cidade.

Em decorrência disto, junto de outros professores, Aisllan resolveu fundar o Grupo de Acolhimento e Cuidado dos Estudantes da UFOP (ABRACE), um projeto desenvolvido no âmbito do Programa de Diversidade e Convivência da UFOP (PIDIC) e coordenado pela Prace. Os encontros do ABRACE são realizados desde abril de 2019 e têm como objetivo criar espaço para discussão de aspectos da vida universitária de modo geral. Em artigo escrito pelos fundadores, o projeto é descrito como “um grupo terapêutico aberto, articulado por meio de técnicas grupais voltadas para a escuta, ajuda mútua e apoio psicossocial dos participantes”.

“A própria ideia de universidade vem do coletivo, universidade é um universo, uma constelação de pessoas, assuntos, temas, unidades, saberes.” (Aisllan de Assis)

Abordagem dentro de sala de aula

Outro ponto introduzido pelas estudantes entrevistadas foram as dinâmicas dentro de sala de aula e o auxílio dos professores em relação às dificuldades impostas pelos transtornos. Algumas comentaram ter dito a alguns professores que possuíam o TDAH, outras disseram não se sentir à vontade para isso. “Não acho que nenhum professor tenha me dado essa abertura”, diz a graduanda em História Ívina Ferreira Bernardino, de 21 anos.

Mas a realidade é que, como diz Aisllan, “a maioria absoluta dos professores universitários não receberam formação para serem professores. Eles são engenheiros, médicos, jornalistas, escritores, biólogos, veterinários, são profissionais que, como eu e você, cursaram um curso universitário profissional. E em algum momento da sua carreira se destinaram ao trabalho de professor, seja fazendo mestrado/doutorado ou se habilitando para ser professor”.

Segundo o professor de Medicina, ainda há um longo processo de sensibilização e fortalecimento à frente dos professores em seu papel pedagógico.

Rede de cuidado

Por mais que a saúde mental e questões psicossociais de modo amplo já fossem discutidas no ambiente universitário antes da pandemia em 2020, principalmente como forma de apoio e prevenção ao suicídio, o assunto se tornou mais presente nas conversas e mídias durante o isolamento social, mantendo-se também no retorno presencial, a partir de março de 2022.

Segundo Aisllan, muitas vezes a estrutura educacional atual se mostra parte do sistema que desumaniza as pessoas ao exigir delas posturas e modos que ignoram as emoções, o sofrimento, os modos particulares, as deficiências, as dificuldades. Entretanto, tais assuntos precisam ser tópicos de discussão dentro de sala de aula, em palestras e eventos organizados pela universidade e seus diversos núcleos.

A criação, ampliação e divulgação de projetos e iniciativas que abordem esse tema dentro e fora da universidade muito podem agregar às experiências e vivências dos estudantes da UFOP. Desse modo, é papel da universidade criar uma rede de saúde mental, de apoio e de prevenção ao suicídio, uma rede que ligue todas estas iniciativas que já existem, de apoio e atenção às questões individuais dos estudantes, e unificá-las.

“Se bem-organizado, bem esclarecido e bem comunicado pode ser uma rede poderosa de cuidado” (Aisllan de Assis)

Sarah Couto é estudante do 3º período do curso de Jornalismo Instituto de Ciências Sociais Aplicadas/Universidade Federal de Ouro Preto. Esta reportagem foi produzida durante a disciplina Apuração, Redação e Entrevista.
Instagram: @sarahcoutao

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