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Hoje é sábado, 18 de outubro de 2025

Exclusivo: Propina de R$500 mil garantiu mineração no Botafogo, diz PF

Ligação direta entre organização criminosa e funcionários públicos de alto escalão teriam servido para viabilizar projetos minerários em área de proteção e cancelamento de multa ambiental

Imagem aérea mostra a comunidade de Botafogo e a Mina Patrimônio logo em frente
Operação da Patrimônio Mineração ficou suspensa por cerca de quatro meses por destruição de caverna - Foto: Lui Pereira/Agência primaz

Um documento obtido com exclusividade pela Agência Primaz, contendo os dados telemáticos do lobista João Alberto Paixão Lages (preso desde o dia 17 de setembro na Operação Rejeito), detalha, segundo a Polícia Federal, a atuação do grupo investigado como organização criminosa (ORCRIM) para alterar decretos estaduais e cooptar altos servidores públicos de Minas Gerais em troca de licenças fraudulentas para as empresas Patrimônio, acusada de destruir uma caverna e HG Mineração na Serra do Botafogo, em Ouro Preto.

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A investigação federal sobre a Operação Rejeito alcançou um novo patamar com a Informação de Polícia Judiciária (IPJ) de número 042/2025. Datado de 10 de julho de 2025. O documento expõe em detalhes o que seria o funcionamento de um sofisticado esquema de corrupção montado para obter, de forma ilícita, licenças e permissões para projetos minerários irregulares na Serra do Botafogo, Projeto Patrimônio (Patrimônio Mineração Ltda.) e o Projeto Moreira (HG Mineração S/A).

A investigação da PF rastreou uma série de tratativas que demonstrariam o controle exercido pela organização criminosa liderada por Alan Cavalcante, João Alberto Paixão Lages e Helder Adriano de Freitas. O relatório demonstra o funcionamento das decisões cruciais dos órgãos ambientais de Minas Gerais que indicariam o favorecimento dos interesses do grupo.

Manobra na Estação Ecológica do Tripuí

Imagem aérea demonstra a localização da Estação Ecológica do Tripuí e a cidade de Ouro Preto no fundo na região da Serra do Botafogo
Antes da revisão de Plano de manejo, as áreas da Patrimônio Mineração e HG Mineração estavam dentro da Zona de Amortecimento da Estação Ecológica do Tripuí - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Entre as manobras apontadas, destaca-se a conspiração para alterar o status de proteção da Estação Ecológica Estadual do Tripuí, lar do Peripatus Acacioi, um pequeno e raro animal endêmico considerado um fóssil vivo pela ciência e com risco de extinção.

A Área Diretamente Afetada (ADA) do empreendimento Projeto Patrimônio (Patrimônio Mineração Ltda.) estava localizada dentro da Zona de Amortecimento do Tripuí. Manter a ADA nessa zona impunha restrições severas ao licenciamento ambiental.

De acordo com o documento, a solução encontrada pela denominada ORCRIM foi garantir a aprovação da revisão do Plano de Manejo da UC, o que permitiria que a área da mineração ficasse de fora do perímetro de proteção. Com isso, a empresa poderia pleitear e operar com uma Licença Ambiental Concomitante – Nível 1 (LAC1), um tipo de licença simplificada em que as etapas de licença prévia, licença de instalação e licença de operação ocorrem de forma simultânea e simplificada.

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O processo de revisão do plano de manejo com a redução da área de amortecimento da Unidade de Conservação precisava ser apreciado em dois colegiados, o Conselho Consultivo da Estação Ecológica Estadual do Tripuí, responsável pela deliberação inicial e pela Câmara de Proteção à Biodiversidade e de Áreas Protegidas (CPB), vinculada ao Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), instância final de votação.

Em 20 de agosto de 2024, segundo o documento, Helder Freitas solicitou que João Alberto entrasse em contato com “RF”, que a PF presume ser Rodrigo Franco (então presidente da FEAM), a respeito da “Unidade de Conservação”.

No dia seguinte, em 21 de agosto de 2024, Rodrigo Franco enviou uma mensagem a João Alberto. Na mensagem, Rodrigo fala sobre uma reunião que aconteceria entre representantes da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM) e Instituto Estadual de Florestas (IEF) com a Patrimônio Mineração, representada por Helder e declara categoricamente que “já está tudo resolvido”. Essa reunião, que demonstrava a influência de Rodrigo Franco nas decisões do processo, teria acontecido dias depois, em 26 de agosto de 2024.

Mapa com a revisão do Plano de Manejo da Estação Ecológica do Tripuí
Mapa com a revisão do Plano de Manejo da Estação Ecológica do Tripuí

Ao longo do mês de outubro, havia a expectativa por parte dos investigados de que o novo plano de manejo da Estação Ecológica do Tripuí, com a redução da área de amortecimento fosse aprovada no Conselho Consultivo. No dia 3 de outubro, a reunião não teria ocorrido por falta de quórum. No grupo de Whatsapp, denominado “DM’s”, Helder demonstrou impaciência com o processo de licenciamento: “João, tem gente sabotando! Da própria UC”, escreveu.

Já em 23 de outubro de 2024, o grupo celebrou a primeira vitória formal: a aprovação do novo Plano de Manejo no Conselho Consultivo da Estação Ecológica Estadual do Tripuí. O plano foi então encaminhado para a instância superior, a Câmara de Proteção à Biodiversidade e de Áreas Protegidas (CPB).

Ainda em 24 de outubro de 2024, no dia seguinte à aprovação inicial, Rodrigo Franco cobrou João Alberto sobre o resultado da reunião e mencionou a necessidade de se encontrar com Felipe Lombardi Martins (o operador financeiro da ORCRIM) para “fechar o mês passado e o deste mês”, o que, de acordo com a PF, sugere a prática de repasses financeiros mensais como contrapartida por seus atos.

Obstáculos e pressão final

O processo enfrentou resistência nos colegiados ambientais. Em 26 de novembro de 2024, durante a 103ª reunião da CPB, a votação sobre a revisão do Plano de Manejo foi retirada de pauta após um pedido de vista.

Em 17 de dezembro de 2024, na 104ª reunião Ordinária da CPB, o processo foi novamente barrado, sendo “baixado em diligência” após solicitação de vista por dois conselheiros.

De acordo com o relatório, no mesmo dia, Helder Freitas, criticou a demora e as dificuldades impostas por conselheiros, além da condução do processo e exigiu, em mensagem de áudio a João Alberto, que Breno Lasmar (que presidia o CPB) e Rodrigo Franco providenciassem a anuência da Unidade de Conservação:

“O João, agora tinha que exigir do Breno, do Rodrigo, sabe que que é? É a Unidade de Conservação dar a anuência pra gente, só isso. Sem pedir porra nenhuma, né? Porque essa cagada que eles já fizeram agora, a forma deles corrigirem é dando essa anuência. É uma lambança. Ali tem uma quadrilha instalada em Ouro Preto ali com a Duda agora, com a UFOP e com essa galera aí, viu? Eles instalaram lá agora. Estão comandando lá tudo. Com aval do prefeito, do Zaqueu e o caralho a quatro. Brincadeira, né?”, disse.

Finalmente, em 28 de janeiro de 2025, a articulação teria surtido efeito com a aprovação da revisão do Plano de Manejo da Estação Ecológica Estadual do Tripuí durante a 105ª Reunião da CPB, mas não sem os votos contrários de ao menos três conselheiros, que pediam maiores informações sobre o novo zoneamento e um maior tempo de reflexão antes da tomada de decisão.

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Decreto suspeito

O relatório também detalha o esforço para articular uma mudança na legislação estadual em benefício direto da chamada ORCRIM. A Patrimônio Mineração Ltda. estava impedida de avançar no seu processo devido a auto de infração pendente, relacionada à mesma área que se pretendia minerar por desmatamento sem autorização de 3.400 m² de vegetação nativa de campo rupestre realizado pela Cedro Laboratório e Serviços LTDA.

O auto de infração resultou na imposição de uma multa simples, no valor de 500 UFEMGs, equivalente a R$1.796,60 na época, além da suspensão das atividades da empresa. Segundo o processo administrativo nº 683649/20, a penalidade foi mantida em primeira instância e a situação do débito permanecia em aberto.

O Decreto Estadual nº 47.749/2019, que regula a autorização para intervenções ambientais e produção florestal em Minas Gerais, exigia o pagamento desta multa como condição indispensável para o andamento do processo de licenciamento ambiental da Patrimônio Mineração Ltda. No entanto, ainda segundo o relatório, em vez de quitar o débito, a organização criminosa teria articulado uma mudança na legislação para burlar o impedimento.

Mensagens interceptadas pela investigação indicam que Alan Cavalcante, apontado como líder do esquema, mobilizou contatos diretos no alto escalão público para viabilizar a alteração do decreto. Em 25 de outubro de 2024, Rodrigo Franco, então presidente da FEAM, comunicou a João Alberto sobre o sucesso da articulação: uma modificação do Decreto nº 47.749/2019 que permitiria o avanço do licenciamento ambiental da Patrimônio Mineração, mesmo com o débito em aberto. No dia seguinte, Franco informou que o texto alterado já havia sido encaminhado para publicação.

O Decreto Estadual nº48.935 foi assinado pelo governador Romeu Zema e oficialmente publicado em 02 de novembro de 2024. O novo decreto alterou o artigo 13 do decreto anterior e isentou a Patrimônio Mineração do pagamento da multa, além de possibilitar o prosseguimento do licenciamento.

No dia 03 de fevereiro de 2025, o parecer técnico da FEAM (nº 12/FEAM/URA LM – CAT/2025) foi finalizado, liberando o Licenciamento Ambiental Concomitante (LAC) para a Patrimônio Mineração. No mesmo dia, o Presidente da FEAM, Rodrigo Franco, comunicou-se diretamente com João Lajes para informar sobre o andamento e solicitar uma reunião imediata.

O preço do êxito: R$500 mil

Com o caminho ambiental desimpedido para a exploração de minério de ferro em Ouro Preto, em 19 de fevereiro de 2025, dias após a obtenção da licença ambiental, Rodrigo Franco enviou uma mensagem cobrando João Alberto sobre o valor acordado pelo “êxito da Patrimônio”. A Polícia Federal entendeu, com base nas comunicações, que a quantia combinada pelo sucesso do licenciamento foi de R$ 500 mil.

O valor de R$500 mil, segundo os autos, não seria apenas para remover a multa, mas para garantir todo o licenciamento do empreendimento, como a remoção da suspensão de qualquer atividade no terreno, a redução da Zona de Amortecimento da Estação Ecológica do Tripuí, além da segurança institucional do empreendimento após a aprovação do licenciamento.

Fragmentação e corrupção

O projeto da HG Mineração, na mesma Serra do Botafogo, visava extrair até 300.000 t/ano de minério de ferro. Tanto a HG quanto a Patrimônio Mineração são acusadas pela comunidade de fragmentar seus processos de licenciamento em diferentes superintendências da FEAM para evitar a exigência de um estudo de impacto cumulativo, o que facilitaria a aprovação de projetos de Nível I ou II.

A HG Mineração S/A solicitou seu licenciamento (Projeto Moreira) através da Central URA Metropolitana, de Belo Horizonte, enquanto o empreendimento Patrimônio Mineração, parte do mesmo grupo, utilizava a URA Leste de Minas, em Governador Valadares.

Essa divisão proposital dos pedidos entre diferentes regionais da FEAM levantou a suspeita na comunidade de uma tentativa de impossibilitar a avaliação completa dos impactos cumulativos, um estudo exigido para projetos que, quando somados, representam grande impacto ambiental.

A HG Mineração S/A (Projeto Moreira), teria ainda obtido favorecimentos diretos na Agência Nacional de Mineração (ANM) mediante o pagamento de propina e utilizou táticas de fraude regulatória para evitar rigorosas avaliações ambientais no âmbito estadual.

A parte superior esquerda da imagem corresponde à área onde a HG Mineração pretendia se instalar, do lado direito, a Mina Patrimônio e a parte inferior da imagem mostra a comunidade do Botafogo
A parte superior esquerda da imagem corresponde à área onde a HG Mineração pretendia se instalar, do lado direito, a Mina Patrimônio e a parte inferior da imagem mostra a comunidade do Botafogo - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Para garantir o sucesso do Projeto Moreira, o grupo criminoso teria orquestrado favores que abrangem tanto a esfera federal (ANM) quanto a estadual (FEAM). O favorecimento mais explícito teria ocorrido na ANM, por meio da cooptação do servidor Leandro César Ferreira de Carvalho, então Gerente Regional da Agência Nacional de Mineração em Minas Gerais.

Em novembro de 2024, João Alberto Paixão Lages, demandou a Leandro César providências imediatas sobre dois processos administrativos específicos da HG Mineração em curso na ANM.

A atuação do servidor teria incluído o fornecimento de um levantamento detalhado e atualizado sobre o andamento dos processos da HG Mineração e a promessa de solicitar “maior agilidade” na análise dos processos junto aos técnicos da Divisão de Fiscalização de Lavra.

Em contrapartida a esses atos de favorecimento administrativo, Leandro César, segundo a PF, teria solicitado o pagamento de propina. O dinheiro deveria ser entregue por Felipe Lombardi Martins, identificado pela Polícia Federal como o “homem da mala” da organização criminosa, responsável por transportar valores em espécie para agentes públicos.

O que dizem os citados

Os advogados de João Alberto Paixão Lages, lobista cujos dados telemáticos serviram como base para a confecção do relatório, informaram que, “em respeito ao Poder Judiciário, só se manifestarão nos autos dos processo.”

De forma semelhante, a defesa de Felipe Lombardi Martins, identificado pela PF como o operador financeiro e “homem da mala” da organização criminosa, esclareceu que, considerando que o procedimento tramita sob segredo de justiça, não haverá declarações a serem prestadas fora dos autos.

Representantes de Rodrigo Franco, ex-Presidente da FEAM, também afirmaram que a defesa irá se manifestar nos autos do processo, oportunamente e ressaltaram que “até o momento, em franca violação ao direito de defesa e às prerrogativas dos advogados, grande parte das investigações permanece em sigilo, o que impede o adequado exercício da defesa.”

A defesa de Alan Cavalcante do Nascimento, apontado como um dos líderes do esquema, não respondeu aos questionamentos, enquanto ss demais defesas dos citados não foram encontradas ou não retornaram as nossas mensagens, permanecendo em aberto o espaço para todas as manifestações.

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Posicionamento do Governo de Minas Gerais

Por mensagem de e-mail, a reportagem da Agência Primaz apresentou, ao Governo do Estado de Minas Gerais, questionamentos referentes à publicação do Decreto Estadual nº 48.935, especificamente em relação à justificativa legal e técnica, ao impacto regulatório do documento legal e à conexão com a suposta ORCRIM, tendo em vista que o mencionado decreto “removeu o último obstáculo legal que impedia o avanço do Projeto Patrimônio, permitindo que a licença ambiental fosse liberada em fevereiro de 2025.

Confira, a seguir, a íntegra da resposta encaminhada à redação d a Agência Primaz, às 18h20 dessa quinta-feira (16), aproximadamente uma hora depois da publicação desta reportagem:

O Governo de Minas reitera o compromisso com a legalidade, impessoalidade e transparência dos atos administrativos vigentes. E repudia veementemente a conduta de agentes lotados em cargos públicos contrária aos interesses públicos, e ao princípio da moralidade.
O Decreto nº 48.935, de 01/11/2024, não viola os princípios da administração pública, e foi editado em estrita observância à legislação vigente. É importante ressaltar que esse decreto não exime nenhuma empresa da obrigação de arcar com sanções, como o pagamento de multas por infrações ambientais.
Pelo contrário, o parágrafo 1º do art.13, reitera o pagamento de multas, como requisito indispensável para a autorização de intervenção ambiental, além de não alterar outros requisitos já previstos pelo decreto 47.749, de 11 de novembro de 2019.
§ 1º – O infrator deverá, em relação às sanções administrativas aplicadas pelo órgão ambiental estadual, comprovar o recolhimento, o parcelamento ou a conversão da multa nos termos de regulamento específico.
O decreto nº 48.935 tem como principal objetivo proteger o meio ambiente e garantir o desenvolvimento sustentável do estado. É importante ressaltar que a alteração das medidas possibilita que pessoas físicas ou jurídicas que não sejam infratoras responsáveis por intervenções irregulares possam promover a regularização da intervenção com as devidas compensações ambientais, em benefício do meio ambiente, e sem prejuízos financeiros. Ou seja, a alteração possibilita que terceiros não responsáveis por qualquer tipo de intervenção ilegal possam ingressar com o procedimento para regularização corretiva, promovendo as compensações ambientais pertinentes.
Nesse sentido, o infrator responsável pela intervenção ilegal continua obrigado ao recolhimento da multa a ele aplicada, mas a área intervinda irregularmente pode ser objeto de regularização, desde que atendidos todos os demais requisitos previstos pela norma, possibilitando que as compensações decorrentes daquela intervenção possam ser efetivadas minimizando o dano ambiental decorrente da irregularidade cometida.
O Governo não atende a interesses pessoais. Se houve aproveitamento desse mecanismo em benefício próprio ou para viabilizar atividades irregulares, todos os processos afetados serão devidamente revistos.
O Governo de Minas, por meio da Controladoria-Geral do Estado (CGE-MG) e da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), segue contribuindo com as autoridades responsáveis para que os envolvidos tenham punição exemplar.
E não isentará nenhuma empresa de arcar com a obrigação de reparar possíveis danos ambientais, nos termos da legislação vigente.
Atenciosamente,
Núcleo de Atendimento à Imprensa
Superintendência Central de Imprensa
Secretaria de Estado de Comunicaçãosocial
Governo do Estado de Minas Gerais

Foto de Lui Pereira
Lui Pereira é jornalista, fotojornalista e contador de histórias. Um cronista do cotidiano marianense.