Desastre, patrimônio e direito à memória

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Foto: Lui Pereira/Agência Primaz - Novembro/2020

Neste dia 5 de novembro, mais uma vez é relembrada essa triste história para os moradores de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. A lama ocasionou a perda de memórias e identidades. As marcas delimitadas pela tragédia colocaram esses moradores no patamar de atingidos e representou algumas ressignificações na relação destes com o patrimônio perdido, que agora se reconstitui por meio de uma memória afetiva, na busca em recompor aquilo que se foi e na tentativa de manterem vivas as identidades ligadas ao espaço que já não existe. Após a destruição dos territórios de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, todas as manifestações patrimoniais foram alteradas. A perda tanto do território quanto da própria possibilidade de realização dos rituais gerou uma série de conflitos que culminaram na luta pela afirmação da identidade dos atingidos, que se configura na manutenção dessas tradições e, para os atingidos de Bento Rodrigues, no direito de estabelecerem esses ritos nos mesmos locais onde eram realizados, mesmo que sobre as ruínas.

Lugar para a memória, as ruínas de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo expõem os registros da vida e da trajetória social e histórica dos atingidos, incididos sob a luz do patrimônio, na reconfiguração do tempo e sentidos na ressignificação de suas identidades. A ligação com as ruínas desperta variadas formas de emoções patrimoniais, ora atreladas ao aspecto da autenticidade que se concentra na continuidade do vínculo entre o estado atual do patrimônio destruído na relação com a sua origem; ora com a emoção da presença, na dinâmica da proximidade estabelecida entre os atingidos junto aos bens patrimoniais; ora em relação com a beleza, ligada ao valor estético que o território destruído ainda representa. Todos esses sentimentos são amplificados pela emoção frente às ruínas, que se ligam aos lugares de memória, reforçando a presença do passado.

Após cinco anos da tragédia, a construção do “novo” Bento Rodrigues e da “nova” Paracatu de Baixo ainda é uma incógnita para os atingidos. Eles ainda permanecem desterritorializados na cidade de Mariana e em meio às disputas em torno da manutenção da memória ligada ao espaço patrimonial destruído, mas que ainda permanece vivo na sua intangibilidade, nos discursos e nas práticas que se ressignificam e se valorizam por meio da sociabilidade e da sensibilidade no contato com os bens patrimoniais identitários. O rompimento da barragem causou inúmeras perdas que levarão anos para serem reparadas; algumas delas jamais serão restituídas. A grande dúvida que se coloca é sobre como serão estabelecidas as relações afetivas, de identidade, que os atingidos identificam nesse passado, mas que se reconfigura no presente, e podem gerar outras formas de socialização no futuro. É necessário, nesse processo de reassentamento, o estabelecimento de uma política de patrimônio que reconstrua a memória coletiva dos atingidos pelo rompimento da barragem, no intuito de visibilizar, referenciar e dar significado a esse grupo que constantemente luta pelo direito ao passado, na manutenção das identidades. Tal perspectiva coloca-se da mesma maneira com os usos que se pretende dar às ruínas do antigo Bento Rodrigues, pois o dever de memória é uma forma de reparação diante do desastre decorrente de crime ambiental, na medida em que todo o território ocupado foi destruído. Deve-se reforçar o não esquecimento, colocando os atingidos como os principais agentes na busca deste reconhecimento.

(*) André Fabrício Silva é Museólogo e Historiador, Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (MAST/UNIRIO) e Coordenador da Oficina de Educação Patrimonial / Tempo Integral – SEMED- Mariana MG.

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