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Hoje é quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Mineradora pode apagar vestígios de três séculos de história

Parte do projeto está sobre Zona de Amortecimento do Parque Municipal das Andorinhas

BAirro alvorada, antonio pererira e novo bento
Na divisa dos municípios de Ouro Preto e Mariana, o Projeto Walls pretende extrair 300 mil t/ano de minério de ferro - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

O Projeto Walls, um empreendimento de mineração de minério de ferro em fase de licenciamento nos municípios de Ouro Preto e Mariana, coloca em risco um complexo com dez sítios arqueológicos que datam dos primórdios da colonização e do ciclo do ouro no Brasil. Área vizinha ao mirante da Estrada da Purificação pode destruir 10 sítios arqueológicos e levar insegurança hídrica para os moradores do Bairro Alvorada.

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De acordo com o Relatório de Impacto no Patrimônio Cultural (RIPC), parte dos estudos exigidos para o licenciamento, revelou que a Área Diretamente Afetada (ADA) do projeto e seu entorno estão localizados em uma região de alta concentração de vestígios históricos, muitos deles a pouquíssimos metros das futuras operações de lavra, sendo que pelo menos um deles, segundo a própria mineradora está dentro dos limites da ADA.

A mineração deve ocorrer nos limites municipais entre Ouro Preto e Mariana. A parte ouropretana da operação está localizada sobre a Zona de Amortecimento do Parque Municipal das Andorinhas, enquanto na porção marianense, moradores do Bairro Alvorada temem pela água, captada a poucos metros do futuro empreendimento.

Os pontos pretos na imagem são as localizações dos sítios arqueológicos, pelo menos sete deles estão perigosamente próximos da ADA
Os pontos pretos na imagem são as localizações dos sítios arqueológicos, pelo menos sete deles estão perigosamente próximos da ADA

Patrimônio cultural ameaçado

O local conhecido como Fazenda Romão, nas margens da recém pavimentada Estrada da Purificação, bem próximo do mirante, possuí ao menos 10 sítios arqueológicos registrados pelo IPHAN. Trata-se de estruturas de exploração aurífera, vias históricas e resquícios de habitações e estruturas de vigilância que ajudam a contar a história da ocupação da região durante os séculos XVII e XVIII.

Todo este patrimônio, porém, está ameaçado pelo Projeto Walls, que pretende extrair 300 mil toneladas de minério de ferro ao ano do local. De acordo com EPIC/RIPC – Estudo Prévio de Impacto Cultural/Relatório de Impacto no Patrimônio Cultural, apresentado pela própria empresa como parte do processo de licenciamento ANM Nº830.578/2006, todos os 10 sítios arqueológicos da área estão a menos de 1 km de distância da ADA, metade deles a menos de 30 metros e um deles sobre a ADA do empreendimento.

O local é uma das áreas com maior concentração de resquícios arqueológicos da nossa região, com 10 dos 126 sítios arqueológicos identificados, cerca de 8% do total. A própria Estrada da Purificação tem valor histórico e arqueológico, por se tratar de uma estrada histórica, passagem dos tropeiros em busca de ouro.

O Sítio Arqueológico Fazenda Romão III está a apenas 0,008 km da ADA (8 metros), e o Fazenda Romão II a 0,003 km (3 metros), demonstrando contato ou proximidade extrema. O Núcleo de Mineração Água Suja I está a 0,23 km e a Estrada da Purificação a apenas 0,26 km.

O Sítio Arqueológico Núcleo de Mineração Água Suja I é um dos dez sítios ameaçados pelo Projeto Walls - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz
O Sítio Arqueológico Núcleo de Mineração Água Suja I é um dos dez sítios ameaçados pelo Projeto Walls - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

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Embora o Projeto Walls afirme que seu arranjo geral e estratégia de implantação foram definidos respeitando as limitações para proteger os sítios arqueológicos avaliados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, o impacto físico da lavra a céu aberto representa uma ameaça direta:

O decapeamento (remoção do solo) e a movimentação de terra inerentes à atividade de mineração alteram o relevo e, consequentemente, podem atuar sobre o patrimônio material de natureza arqueológica, sobretudo os que se localizam na superfície e subsuperfície do solo.

A lavra e a operação de maquinário (mesmo sem o uso de explosivos, que não está previsto no projeto) geram vibrações que podem causar danos a materiais mais antigos, como trincas e rachaduras, ou o comprometimento da estrutura, especialmente em ruínas e alicerces de pedra.

A proteção desses bens é de responsabilidade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a destruição desses vestígios não é apenas uma perda material, mas o apagamento da memória e da identidade dos grupos sociais formadores da sociedade mineira, tornando o patrimônio arqueológico um recurso finito e não renovável. O Plano Diretor de Mariana, por exemplo, enfatiza explicitamente a proteção dos sítios arqueológicos em suas diretrizes de zoneamento.

Moradores do Bairro Alvorada temem pela qualidade da água

A possível instalação do Projeto Walls, reacendeu no Bairro Alvorada um temor que não é novo. Se por um lado o território guarda mais de dez sítios arqueológicos e uma estrada histórica de mais de 300 anos, por outro ele é berço de nascentes que sustentam a vida cotidiana dos moradores. E é justamente essa água, descrita por eles como “boa demais, que não tem nem como acabar com nada”, que agora parece ameaçada.

A nascente onde os moradores do Bairro Alvorada captam água para consumo fica a poucos metros da ADA do Projeto Walls - Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz
A nascente onde os moradores do Bairro Alvorada captam água para consumo fica a poucos metros da ADA do Projeto Walls - Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

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A principal captação do bairro está situada a poucos metros da ADA da mineração, logo abaixo do mirante e ao lado da placa que sinaliza o sítio arqueológico “Núcleo de Mineração Água Suja I”. A proximidade extrema entre a nascente e a área prevista para corte de vegetação, movimentação de solo e instalação de estruturas preocupa profundamente a comunidade. 

O medo não é abstrato, o Alvorada já vive, há anos, dificuldades relacionadas ao fluxo de água de chuva. Segundo Anderson, vice-presidente da Associação de Moradores, o problema se agravou após a pavimentação da Estrada da Purificação. “Antes, quando a estrada não era pavimentada, o solo absorvia a água. Depois que fez a estrada, o volume aumentou muito. A gente foi obrigado a fazer canaleta em vários pontos críticos”, relata. Para ele, qualquer intervenção sem drenagem adequada “vai prejudicar muito”, especialmente se a vegetação for removida: “A tendência da água é descer. Aí vem a erosão, aumenta o volume, piora tudo”.

Moradores apontam ainda que a vulnerabilidade hídrica, já existente, pode ser ampliada com o empreendimento. 

“Primeiramente, as nascentes d’água. A gente depende delas. Falta muito recurso” – Cristian Henrique, morador do Bairro Alvorada

A água captada no mirante é a principal fonte de abastecimento do bairro, um lugar que, além de não possuir saneamento básico, não tem pavimentação estruturada e ainda enfrenta energia elétrica irregular. As obras e manutenções do cotidiano, como a concretagem de trechos críticos e as canaletas de contenção, foram financiadas pelos próprios moradores. “Fazemos vaquinha para passar pelo período de chuva”, diz Anderson. A comunidade teme que uma atividade mineral tão próxima agrave problemas que o poder público nunca resolveu.

A precariedade da infraestrutura expõe essa ausência sistemática do poder público. O Alvorada é oficialmente reconhecido pelos órgãos públicos, possui CEP atribuído às ruas, mas, para a administração municipal, continua sendo tratado como um território “não legalizado”. Esse limbo jurídico se tornou argumento para negar obras básicas. Para a moradora Angelita Venâncio Costa, a contradição é evidente: “A prefeitura fala que o bairro não é legalizado, mas a gente tem tudo: CEP, papel de compra, endereço, tudo”.

Vista do bairro Alvorada

Segundo Anderson, durante o ano ocorreram duas reuniões nos Bairros Santo Antônio e no Gogô, mas que o Alvorada, em si, “não foi comunicado de nada”. Para o morador Afonso Venâncio Costa, a falta de transparência é o maior gerador da desconfiança da população, que ecoa um incômodo comum, “não dá pra confiar não, são estrangeiros… não querem saber de nós, não” . O sentimento é compartilhado por sua esposa Angelita que ao mencionar a maravilha que é assistir ao nascer do sol da sacada de sua casa, relembra uma frase que nunca esqueceu, dita por um antigo morador, Seu Cardoso: “Vocês vão ter que sair daqui. As mineradoras vão levar tudo isso aqui”, lembra.

Estrada da Purificação

Ao lado da Estrada da Purificação, na parte superior da imagem é onde a mineradora pretende se instalar - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz
Ao lado da Estrada da Purificação, na parte superior da imagem é onde a mineradora pretende se instalar - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Reinaugurada no final de 2023 após obra de pavimentação, o trânsito na Estrada da Purificação é regulamentado através do decreto n.º 8.047 de 24 de outubro de 2023 do município de Ouro Preto. O documento assinado pelo prefeito Angelo Oswaldo define que a estrada não pode receber trânsito de caminhões pesados e veículos a serviço de mineradoras, pois a estrada “possui um viés ecológico, paisagístico e também cultural” e teria o objetivo de beneficiar “a população residente na região, visitantes e turistas, contribuindo para o desenvolvimento turístico e socioeconômico da região”.

O projeto Walls, entretanto, pretende extrair minério de ferro às margens dessa mesma estrada, próximo ao mirante que dá vista ao distrito de Antônio Pereira, ao Bairro Alvorada e a parte da cidade de Mariana. Os estudos de visada – que medem o impacto visual do projeto, apresentados pela própria mineradora, classificam que o impacto visual seria de grande importância, permanente e irreversível.

Por se tratar de uma mina que pretende se instalar em topo de morro, o impacto visual poderia ser sentido mesmo a distância, como seria o caso de boa parte do distrito de Antônio Pereira.

O impacto visual do empreendimento é classificado como de grande importância, permanente e irreversível - Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz
O impacto visual do empreendimento é classificado como de grande importância, permanente e irreversível - Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Parque das Andorinhas

Além de colocar em risco o patrimônio histórico e arqueológico da região, grande parte do projeto está localizado sobre a Zona de Amortecimento do Parque Municipal das Andorinhas, local de grande importância hídrica, de lazer e de preservação de espécies vegetais e animais.

O Parque das Andorinhas, muito frequentado pelas suas cachoeiras, é também onde nasce um dos importantes afluentes do Rio São Francisco, o Rio das Velhas, responsável por 70% do abastecimento de água de Belo Horizonte. Classificado como uma Unidade de Conservação de Proteção Integral e a Zona de Amortecimento, tem a função primordial de minimizar os impactos negativos sobre o núcleo da Unidade de Conservação e promover a qualidade de vida das populações.

A projeção acima demonstra a Zona de Amortecimento do Parque Natural Municipal das Andorinhas sobre boa parte da ADA do bairro Alvorada

Embora os estudos indiquem que a área do empreendimento não está localizada em região de corredor ecológico formalmente instituído, o Plano de Manejo do Parque Natural Municipal das Andorinhas prevê o uso da sua Zona de Amortecimento como corredor ecológico.

Este corredor é essencial para conectar o PNMA à Floresta Estadual do Uaimii e à APA Sul-RMBH, interligando diversos fragmentos florestais. A liberação da mineração implica em supressão de vegetação nativa, causando perda e alteração de hábitat e perda de espécimes animais e vegetais, alguns endêmicos ou com risco de extinção.

A perda de hábitat nessa região de alta sensibilidade pode contribuir para a vulnerabilidade ecológica local, comprometendo a conectividade ecológica necessária para a estabilidade das comunidades faunísticas.

Questionamos o IPHAN sobre o processo de licenciamento e os possíveis riscos de destruição de sítios arqueológicos com a instalação da mineradora, mas até o fechamento da reportagem não obtivemos respostas.

Foto de Joyce Campolina
Joyce Campolina é graduanda em Jornalismo pela UFOP, apaixonada por Jornalismo Cultural e Político, fotojornalismo, audiovisual e por contar histórias que precisam ser ouvidas
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Lui Pereira é jornalista, fotojornalista e contador de histórias. Um cronista do cotidiano marianense.