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Hoje é quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Museu de Mariana exibe o documentário “Tempo Vário”

Audiovisual resgata a história de um importante patrimônio cultural imaterial marianense

Nathália Rezende, Gustavo Nolasco e Lucas Godoy, na abertura da sessão de estreia do documentário “Tempo Vário”
Nathália Rezende, Gustavo Nolasco e Lucas Godoy, na abertura da sessão de estreia do documentário “Tempo Vário” – Foto: Luiz Loureiro/Agência Primaz

Na última sexta-feira (26), os jardins do Museu de Mariana receberam a emocionante estreia do documentário “Tempo Vário”, produção que lança luz sobre a “Folhinha de Mariana”, um dos mais singulares e duradouros patrimônios da cidade. O evento, reuniu historiadores, realizadores, antigos leitores e moradores da região, em uma noite marcada por memórias, reencontros e a valorização da cultura local.

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Centenária Folhinha de Mariana

O documentário, disponível online no Vimeo, é fruto de um projeto coletivo idealizado por Nathália Rezende e Marcos Lopes, historiadores do Museu de Mariana, em parceria com as produtoras Nitro Histórias Visuais e Vellosia Filmes e com Frederico de Mello Brandão Tavares e Paulo Bernardo Ferreira Vaz, pesquisadores da UFOP. A produção audiovisual se consolidou como desdobramento de uma oficina pedagógica, envolvendo arte-educadores e pesquisadores, em uma proposta que une educação patrimonial e cinema documental, cujo lançamento integra a programação da 19ª Primavera dos Museus.

Para Gustavo Nolasco, da Nitro Histórias Visuais, a proposta do documentário veio ao encontro de seu desejo de retornar a Mariana para valorizar as histórias que moldam a identidade da cidade. “O objetivo era mesmo exaltar um patrimônio de Mariana, que é a Folhinha, e que merecia um documentário pela história que tem“, declarou na abertura da sessão.

Explicando à Agência Primaz, a origem da ideia do documentário, Nathália Rezende destaca a função social do Museu de Mariana e a curiosidade inata dos historiadores. “Essa curiosidade do historiador de investigar e correr atrás foi muito vivida por nós dois [Nathália e Marcos Lopes]. E quando a gente começa a investigar e a gente constata, de fato, que tem muito pouco sobre essa Folhinha de Mariana, a gente fala: Temos que produzir algo. Nós, enquanto Museu de Mariana, temos a função social de dar destaque a esse patrimônio, que é um patrimônio imaterial, mas é um patrimônio vivo. E aí a gente tem um encontro muito grato com o Gustavo Nolasco, da Nitro, e a gente começa a elaborar formas para conseguir contar essa história”.

A Folhinha de Mariana, oficialmente chamada Folhinha Civil e Eclesiástica do Arcebispado de Mariana, é um almanaque anual que há mais de um século reúne previsões meteorológicas, fases da lua, informações litúrgicas, dados agrícolas e utilitários, como tarifas postais e datas móveis. Tornou-se, ao longo das décadas, referência tanto na vida cotidiana quanto na construção da identidade cultural da Região dos Inconfidentes.

A escolha do título “Tempo Vário” — expressão que aparece com frequência na Folhinha para definir dias de meteorologia incerta — revela mais do que uma simples previsão: tornou-se metáfora da própria vida, como apontado por Natália Rezende, Coordenador Pedagógica do Museu de Mariana. “Essa consulta à Folhinha dita, em alguma medida, a própria vida e vivência. O tempo vário é o imponderável, e a Folhinha abraça isso”.

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Vinícius de Moraes e o Tempo Vário

Captura de tela do documentário “Tempo Vário”
Rua Frei Durão, em Mariana, esquina com a Praça Gomes Freire (Jardim) – Foto: Captura de tela do documentário “Tempo Vário”

O termo já havia sido eternizado pelo poeta Vinícius de Moraes, que escreveu, com seu habitual humor e lirismo, no jornal Última Hora, em 1952.

A Folhinha de Mariana

O sol tem estado à altura de um princípio. quando chegamos a Belo Horizonte, há coisa de uma semana, nossa posição habitual era a de nariz para o céu, mesmo ao risco de transformá-lo em pocinhas sob os aguaceiros gerais.

Mas foi aí que sobreveio a Folhinha de Mariana. A Folhinha Civil e Eclesiástica do Arcebispado de Mariana (vende na Livraria Moraes) é uma pedra no sapato do Gabinete de Meteorologia, por isso que dá de uma sentada só toda a “temperatura do ano de 1952”, além de sueltos sobre as festas móveis, as estações do ano, a tarifa postal, os eclipses, o imposto do selo, e informações religiosas pertinentes à comarca. Por este curioso calendário soubemos que neste mês de março, “4′ a 16′”. Isso é importantíssimo para nós, pois a fachada principal do Carmo e a lateral direita se oferece ao sol com uma matutinidade muito pouco condizente com nossos hábitos notívagos e nosso aborrecimento pelas auroras – que de resto se tornam muito preciosas quando vistas. A Folhinha de Mariana diz também “de 18 a 24 – tempo vário”.

E vário tem sido o tempo. O tempo só não é vário para a netinha do impressor da Folhinha de Mariana. No dia de seus anos – conta-se – ela exige bom tempo para a sua festinha. E que avô não faria qualquer vigarice ante um pedido desses?

A Folhinha Civil e Eclesiástica do Arcebispado de Mariana […] é uma pedra no sapato do Gabinete de Meteorologia, por isso que dá de uma sentada só toda a ‘temperatura do ano de 1952’ […] A Folhinha de Mariana diz também ‘de 18 a 24 – tempo vário’. E vário tem sido o tempo”.

[…]

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O Tempo Vário nas memórias

O documentário evidencia como o almanaque transcende o papel em que é impresso, resgatando memórias de sua utilização ao longo de décadas, fixada na parte de dentro das portas das casas, nas paredes e nos estabelecimentos comerciais, regulando datas de plantio, de corte de cabelos e de unhas e, até, como um guia onomástico, com os nomes de santos e santas que regem todos os dias do ano. Nesse aspecto, brotam do documentário histórias de pessoas com nomes escolhidos de acordo com o santo ou santa do dia. “A [minha] primeira [irmã] é Heloísa. Ela chama Heloísa Romana Ferreira. Ela nasceu no dia 09 de março, no dia de Santa Francisca Romana. […] Jorge é 26 de março, que é o dia de São Jorge Neri. Agora eu dei sorte. […] Eu não tenho nome da Folhinha e dou graças a Deus de ser mulher e chamar Eliana Elisabete. Porque se eu fosse homem eu ia chamar Bernardino”, contou uma das depoentes do documentário.

Esse costume de escolher nomes pela Folhinha de Mariana, aconteceu inclusive com o autor dessa repostagem. Seus pais chamavam-se Sebastião e Inês, nascidos respectivamente nos dias 20 e 21 de janeiro, embora ele próprio tenha escapado de chamar-se Basílio Magno ou Gregório, como indicado na folhinha de Mariana para o dia 02 de janeiro.

Sessão de estreia do documentário 'TEmpo Vário" contou com plateia de aproximadamente uma centena de pessoas, acomodadas em cadeiras colocadas no jardim do Museu de Mariana – Foto: Luiz Loureiro/Agência Primaz
Sessão de estreia do documentário contou com plateia de aproximadamente uma centena de pessoas, acomodadas em cadeiras colocadas no jardim do Museu de Mariana – Foto: Luiz Loureiro/Agência Primaz

Prestigiando a estreia de “Tempo Vário”, José Augusto Nunes Nogueira, engenheiro civil aposentado da Universidade Federal de Ouro Preto, natural de Patos de Minas, contou que teve contato com a Folhinha de Mariana logo ao chegar em Ouro Preto, há 47 anos, mas depois revelou ter alguma lembrança de sua mãe consultando a previsão do tempo, ainda em sua cidade natal.

Responsável pela manutenção da estrutura predial da UFOP em Mariana, da qual fazia parte o antigo Palácio dos Bispos, local onde existia a gráfica responsável pela impressão da Folhinha de Mariana, José Augusto lembra de ter conduzido ações de manutenção do telhado e do piso da edificação, que se encontravam em estado precário de conservação, com cronograma ajustado em função do previsto na Folhinha de Mariana.

José Domingos, por exemplo, que já morreu há muito tempo, era mestre de obra. e quando eu falava em fazer alguma coisa no telhado ele dizia: ‘A Folhinha de Mariana está prevendo chuva mês que vem, ‘ta’ prevendo dia tal’. E a gente ficava pensando se ia fazer a obra ou não. Às vezes funcionava, às vezes não”, relembrou José Augusto.

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Patrimônio Marianense

Da esquerda para a direita, Lucas de Godoy, Leo Drumond e Gustavo Nolasco, comemoraram a excelente receptividade de “Tempo Vário”
Da esquerda para a direita, Lucas de Godoy, Leo Drumond e Gustavo Nolasco, comemoraram a excelente receptividade de “Tempo Vário” – Foto: Luiz Loureiro/Agência Primaz

A Folhinha de Mariana é patrimônio imaterial, mas, simultaneamente, por ser impressa, também é material, assumindo uma dualidade que dialoga com o tempo e com o significado de tempo vário, em uma concepção mais ampla. “Todo patrimônio imaterial tem a sua materialidade. A Folhinha tem a sua e permanece viva no ontem, no hoje e no amanhã”, resume Nathália Rezende

Além da exibição do filme, o evento foi também um convite à reflexão sobre o futuro da cidade. Gustavo, ao final de suas declarações à reportagem da Agência Primaz, destacou o risco de Mariana se tornar uma “cidade-dormitório” e defendeu a união de forças locais para manter viva a identidade marianense. “A gente tem que voltar a se comunicar, a produzir junto. Para Mariana não virar uma cidade que ninguém mais se preocupa com ela”, finalizou.

“Tempo Vário” é, portanto, mais do que um documentário. É um gesto coletivo de resistência cultural, um tributo a um símbolo que, por gerações, marcou o tempo e os tempos da vida em Mariana — e que, mesmo com o passar das décadas, continua surpreendentemente atual.

Foto de Luiz Loureiro
Luiz Loureiro é jornalista graduado pela UFOP, fundador, sócio proprietário e editor chefe da Agência Primaz de Comunicação.