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Hoje é domingo, 19 de maio de 2024

Debate “Todos pela vida” abre 20ª edição do Festival da Vida

Com o tema “Fraternidade e Amizade Social, adotado pela Campanha da Fraternidade 2024, o evento tem atividades programadas até 19 de maio

Ecumenismo e diversidade foram as marcas de composição da mesa do debate “Todos pela Vida”
Ecumenismo e diversidade foram as marcas de composição da mesa do debate “Todos pela Vida” – Foto: Amanda de Paula Almeida/Agência Primaz

O evento, que se estende até 19 de maio, aconteceu no Cine Teatro Municipal, na tarde desse sábado (04), enfocando a temática do Festival e abordando assuntos relacionados à cidade de Mariana e à obra Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida. O debate contou com as presenças do cacique Danilo Borum Kren, do pastor evangélico Davi, do monge zen budista Ryosen, de Aída Anacleto, Presidenta do Conselho Municipal da Promoção da Igualdade Racial, do sacerdote de Umbanda, Diego Fernandes, e da professora Tatiana Quites, vice-diretora de políticas para pessoas com deficiências de Belo Horizonte, com mediação do Padre Marcelo Santiago, além da participação online do padre Júlio Lancellotti.

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Todos pela vida

Coube ao Padre Marcelo Santiago, titular da paróquia Sagrado Coração de Jesus, em Mariana, e assessor arquidiocesano da dimensão sociopolítica da evangelização, anunciar a composição da mesa e fazer a mediação do debate.

Como foi mencionado, nós estamos celebrando o Festival da Vida, em sua 20ª edição sobre a condução da Associação Livre de Cultura e Esporte (ALCE), em nome de quem eu agradeço a todos os organizadores pelo convite. O tema proposto para esse ano é ‘Todos pela Vida’, uma convocação para avançarmos em vista da amizade social, para a superação de ódios, divisões e preconceitos, para a promoção do respeito às diferenças, da justiça social e da igualdade de direitos, com foco na inclusão, na acessibilidade e na compreensão da diversidade”, anunciou o mediador.

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Depois de chamar ao palco do Cine Teatro Municipal cada um dos integrantes da mesa de debates, e de dar boas-vindas ao Padre Júlio Lancellotti, em participação online, com imagem exibida em um telão, o mediador fez uma explanação sobre a dinâmica do evento, convidando cada um dos participantes para suas respectivas manifestações iniciais, mas já propondo um tema específico para a primeira fala.

Promoção social, inclusão, diversidade, violência social e igualdade racial

Coube ao pastor Davi Roque a primeira manifestação no debate, falando a respeito de promoção social, seguido pela professora Tatiane Quites, convidada a discorrer sobe inclusão.

A inclusão, ela é ‘pra’ todos nós: ‘pra’ mim, ‘pra’ você e ‘pras’ pessoas com deficiência. Quando a gente fala de inclusão, a gente fala de um paradigma, de uma inserção social que preza pela qualidade para todos. Ela preza para que as pessoas façam parte do processo. Então, quando eu falo de inclusão, eu estou falando do direito à diversidade. Do direito ao outro ser quem ele é”, afirmou Tatiane Quites.

Para a vice-diretora de políticas para pessoas com deficiências, é preciso compreender que acessibilidade é uma questão universal, evitando que se incorra no erro de discriminar ainda mais as pessoas com deficiência.

Quando a gente fala de acessibilidade, o que vem na nossa mente? Um cadeirante, concorda? Uma rampa. Pensou numa rampa, você pensa em quem? Num cadeirante. Se eu penso num cadeirante e numa rampa, eu acabo tirando toda a importância dela, porque a gente coloca somente para um único grupo de pessoas (…) fazendo com que a pessoa, com eficiência se torne foco de algo negativo. Mas não é assim que funciona. Quando a gente pensa em inclusão e a gente abre o processo, há a sensibilidade de acesso. Acesso ‘pra’ quem? ‘Pra’ todo mundo” ressaltou.

Representando o Movimento Negro de Mariana e na condição de presidenta do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (Compir), Aída Anacleto foi chamada a se pronunciar sobre violência social e diversidade.

Falar de nós, falar sobre a sociedade do nosso país, não é muito difícil, porque, na realidade, a gente está em uma região, que é a segunda região mais preta deste país. Então, falar sobre os problemas sociais, em uma cidade rica como Mariana, não é problema para nós. Hoje nos preocupa muito o avanço da mineração e também as consequências, as mazelas, né? Eu acho que é delicadíssimo o momento que vivemos, com uma população flutuante gigantesca e com isso dificultando o nosso acesso aos direitos, às políticas públicas que deveriam estar disponibilizadas para todos os entornos”, iniciou Aída, fazendo alusão às dificuldades e problemas decorrentes da situação atual do município.

Eu costumo dizer que, do período do ciclo do ouro, nós temos o nosso patrimônio histórico e cultural para ser admirado pelo mundo todo. Mas no ciclo do minério é bastante complicado. As questões sociais são visíveis. Nós somos, hoje, 29% da nossa população vivendo na extrema pobreza. Nós temos 42% de nossa população no CadÚnico. Então, essa riqueza que a cidade tem, que ela recebe através dos impostos, ela não está chegando aonde deveria. As políticas públicas não são acessíveis”, pontuou Aída, acrescentando que “somos 62 mil habitantes hoje, segundo o IBGE. Mas, na realidade, quando a gente vai ver no SUS, que é onde a gente pode retirar esses dados, (…) a gente tem mais de 110 mil habitantes utilizando deste lugar, que deveria ser somente para 62 mil. Eu entendo que deveria haver uma discussão maior com as mineradoras e com aqueles que têm aumentado essa população sem nenhum controle, sem nenhum planejamento”.

“Todos pela Vida” da população em situação de rua

Padre Júlio Lancellotti teve sua primeira participação, no debate "Todos pela Vida", relacionada a questões envolvendo a população em situação de rua – Foto: Luiz Loureiro/Agência Primaz
Padre Júlio Lancellotti teve sua primeira participação relacionada a questões envolvendo a população em situação de rua – Foto: Luiz Loureiro/Agência Primaz

Eu acredito que a figura de Dom Luciano é muito emblemática nessa questão do descarte da indiferença e, sobretudo, de que estar do lado dos mais pobres é conflitivo. Estar do lado dos discriminados, seja de discriminação racial, seja de gênero, seja discriminação religiosa, política, econômica, num momento em que a desigualdade social é tão violenta, é bastante conflitiva. E nós sabemos e sentimos na nossa vida e nas ações pastorais ou nas ações dos movimentos populares o quanto conflitivo é”, afirmou Padre Lancellotti no início de sua primeira intervenção.

Em participação remota, Lancellotti foi chamada para falar sobre os desafios de inclusão e respeito aos direitos da população que se encontra em situação de rua e de outros segmentos que não tem acesso aos seus direitos básicos.

Não adianta dizer: ‘Ah, tem UBS ‘pra’ todos’, mas a pessoa em situação de rua não chega lá, não é atendida na UBS, no sistema de saúde. A educação é ‘pra’ todos, mas as crianças mais pobres, que têm que lutar ‘pra’ sobreviver, não chegam na escola. Então, é extremamente conflitivo lutar pela equidade de uma sociedade marcada fortemente, como a nossa, pela desigualdade. (…) Todas as lutas têm uma especificidade, mas todas elas têm unidade. Quem luta defendendo os encarcerados e as encarceradas vai lutar também junto dos sem-terra, junto daqueles que são expropriados pela mineração. Quem está numa luta é aliado da outra, por isso todos nós somos aliados, os povos indígenas, dos povos de matriz africana, das religiões afrodescendentes, todos nós somos ligados em todas as lutas, embora cada uma tenha a sua especificidade, como a luta pela inclusão, lutar contra o descarte, lutar pelas pessoas”, enfatizou.

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A questão indígena e a preocupação com a Mãe Terra

Para o Cacique Danilo Borum Kren, a identidade indígena está ligada, fundamentalmente, à ancestralidade
Para o Cacique Danilo Borum Kren, a identidade indígena está ligada, fundamentalmente, à ancestralidade – Foto: Amanda de Paula Almeida/Agência Primaz

Meu nome é Danilo, eu sou cacique do povo Borum Kren. E talvez muitos nem nunca ouviram falar nesse nome. E aí, volta e meia, vendo a gente de cocar, as pessoas falam: ‘Ah, você ‘tá’ vindo da Amazônia, né?’. Não, nós somos daqui. Eu falo do povo que é originário dessa terra. E antes da gente começar a falar dessa casa comum, a gente tem que entender o que é ser indígena. Porque ‘pra’ gente é colocado como se a gente estivesse lá no passado. Como se a gente fosse ser místico, um ser exótico. Mas o que vai me definir, enquanto indígena, está ligado à minha ancestralidade”, afirmou Danilo Borum Kren, em sua primeira manifestação, quando discorreu sobre a necessidade de cuidados com a Mãe Terra, como proposto pelo mediador.

Na oportunidade da segunda fala do cacique, e mencionando o caos social, as injustiças e, em especial, a destruição ambiental e a insegurança climática, Padre Marcelo Santiago perguntou o que precisamos fazer para mudar essa realidade predatória e quais são as lutas atuais do povo Borum Kren, pela ressurgência e reafirmação do território.

A gente existe, resiste, e a gente permanece nesse território. A gente vê essa terra como a terra dos três filhos. Como a gente fala, nós somos o povo que ocupa os três rios, Alto Rio Doce, Alto Rio das Velhas e Alto Paraopeba. E, ‘pra’ gente, foi negado durante muito tempo se reconhecer enquanto indígena”, declarou Danilo, residente no distrito ouro-pretano de Santo Antônio do Leite, e aluno de História na Universidade Federal de Ouro Preto.

Para Danilo, a luta da ressurgência é buscar sair da invisibilidade, mostrar que o indígena nunca deixou de existir, o que começou a dar resultado a partir de 2019.

Em relação ao respeito ambiental, o cacique ressalta que o planeta não é um supermercado, aonde se vai, retira a mercadoria e, em seguida, se for o caso, é possível pegar de novo. “A montanha não vai crescer. Nosso aquífero, que é definido ali no alto da montanha, se eu corto a montanha, as águas vão sumir. O que aconteceu com o Rio Doce, amanhã não vai mudar. E a gente vai ficar sem beber água aqui. A gente tem que entender esses processos, né? Se de fato esse progresso não é um regresso. ‘Pra’ que eu preciso ter tanta coisa? ‘Pra’ mostrar uma situação social de algo que daqui eu nem vou levar? Mas, nem por isso a gente tem que destruir tanto, criar tantos excessos. (…) A Terra, em si, não vai acabar, mas vai acabar a condição ‘pra’ gente viver, se a gente não mudar”, finalizou.

Afrodescendência e religiosidade de matriz africana

Em seu mestrado na Universidade de São Paulo, Diego Fernandes pesquisou mais de 500 livros didáticos de português, literatura, história e gramática, para tentar descobrir como o hip-hop era apresentado. O ponto de partida foi o Programa Nacional de Livros Didáticos, uma vez que esse “é um equipamento cultural gratuito para toda a comunidade, sobretudo a comunidade pobre, e talvez o único livro que muitas crianças têm acesso”.

Há 10 anos, Diego Fernandes, representante da Umbanda no debate "Todos pela Vida", criou a Escola de Música e Casa de Arte Samba Preto, Choro e Jazz, em Ouro Preto
Há 10 anos, Diego Fernandes criou a Escola de Música e Casa de Arte Samba Preto, Choro e Jazz, em Ouro Preto – Foto: Amanda de Paula Almeida/Agência Primaz

Eu não descobri somente a presença do hip-hop, em alguns casos, mas em 98% dos casos, [descobri] a presença do racismo estrutural nos livros didáticos. Então, ali, eu entendi que essas crianças não têm acesso a produtos de higiene básica e, quando têm acesso a um material didático, esse material didático é racista. Racista, intolerante, preconceituoso, e a gente não consegue descansar nem com uma criança diante de um livro didático, que é uma ferramenta de poder distribuído para milhões de pessoas de forma gratuita”, desabafou Diego Fernandes, ao responder sobre promoção de inclusão da cultura afrodescendente.

“O Festival da Vida é um momento, talvez de forma ecumênica, equitativa e pretenciosa, às vezes, da gente compreender o tempo presente que a gente está vivendo. Quando a gente fala de cosmovisão, é importante a gente entender que se violenta uma religião de matriz africana, não somente com xingamentos, com insultos, mas também com a derrubada das matas, com a poluição dos rios, também com a poluição do nosso sagrado, ressaltou o sacerdote umbandista, ao mencionar a situação da intolerância à religiosidade de matriz africana”.

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Para Diego, o que importa é o entendimento de que, independentemente da religião, o que realmente importa é o respeito e a convivência, além da necessidade urgente de um trabalho conjunto para um conceito que é comum a todos e todas.

Além da gente entender o que acontece no tempo presente, os mortos nos alertam que estamos cometendo erros mais graves que os passados, e talvez de forma irreversível. Mas o único consenso que a gente tem nessa mesa e talvez nessa plateia é que estamos sim destruindo nossa casa, nosso planeta, e que a gente sabe que o recurso, que as pessoas chamam de recurso, na verdade é fonte de vida”, finalizou.

Avaliação e expectativas pós-debate “Todos pela Vida”

Embora sem esgotar sua capacidade de lotação, o Cine Teatro Municipal recebeu um número considerável de assistentes do debate “Todos pela Vida”
Embora sem esgotar sua capacidade de lotação, o Cine Teatro Municipal recebeu um número considerável de assistentes do debate “Todos pela Vida” – Foto: Amanda de Paula Almeida/Agência Primaz

Mesmo com a fase de manifestações dos integrantes da mesa do debate “Todos pela Vida” extrapolando o tempo inicialmente estimado pelo mediador, uma consulta à plateia resultou na abertura de um pequeno espaço de perguntas e respostas, seguido pelas considerações finais dos integrantes da mesa.

Ao finalizar, Padre Marcelo Santiago agradeceu aos organizadores do Festival da Vida, aos participantes do debate e à plateia, lembrando ainda de Dom Luciano, um dos idealizadores do evento.

Queria lembrar que, no dia 02 de maio último, Dom Luciano Mendes, que foi bispo de Mariana, ele completaria 45 anos de episcopado. Ele faleceu em 2006, mas ele foi muito importante como um motivador, um idealizador e também um incentivador desse festival. Inicialmente, a proposta era de que o festival se chamasse Festival da Fé. Então o Luciano disse, não, Festival da Vida, porque a vida é mais ampla, e para que Mariana pudesse, de fato, assumir esse compromisso com a vida e, a partir dos mais necessitados, o esforço de somar forças vivas da sociedade e das religiões em bem desta causa”, relembrou o mediador.

Em entrevista à Agência Primaz, depois do encerramento do debate “Todos pela Vida”, Padre Marcelo falou sobre suas expectativas anteriores e sobre o sentimento de objetivos atingidos com o evento.

As expectativas foram superadas pela diversidade aqui dos que compuseram a mesa e toda uma bagagem que trazem, seja dessa presença e manifestação das várias expressões religiosas tão presentes nesse eixo nosso de Mariana, quanto também da sensibilidade do compromisso social, que trazem de experiências justamente ligadas a todos os setores que dizem respeito à dimensão humana, do cuidado com a vida, do empenho na defesa do ser humano, na promoção deste mesmo ser humano, e numa consciência de fé e de cidadania tão necessários para que a gente possa avançar realmente no bem comum, na construção deste mundo melhor, mais inclusivo, justo, fraterno, mais reconciliado”, declarou.

Questionado sobre como toda essa experiência pode ser colocada em prática no dia a dia, independentemente de eventos como o Festival da Vida, o mediador mostrou-se confiante na possibilidade de uma união de forças dos diversos setores da sociedade, sejam eles laicos ou religiosos.

O espaço só de ouvir, de partilhar, isso já é bastante enriquecedor. É claro que não podemos ficar só no mundo das palavras. A consciência esse ano lembra, diante dos conflitos da sociedade, de que nós devemos trabalhar na linha da amizade social e isso implica, para as religiões, uma presença pública, e somar forças aos organismos da sociedade organizada e aos poderes constituídos para que nós possamos estabelecer realmente frentes novas de mudança, de transformação naquilo que precisa ser mudado e transformado. Nessa perspectiva, nós somos todos irmãos e irmãs”, finalizou Padre Marcelo Santiago.

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