Ciclos
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Corpo e mente entorpecidos. Na noite fria do inverno que se estende, mantém-se imóvel, invisível a qualquer passante. Um pedaço de cobertor, papelão. Há latões num canto qualquer. O córrego está quase seco. É fétida a rua. Alguém coloca a máscara, rapidamente, enquanto reclama do desleixo da cidade. Do outro lado, sons muito vagos. Talvez, uma televisão ligada no bar. As casas já se apagam. Mais silêncio.
Não se sabe o tempo exato da chegada. Naquele lugar, como em tantos outros, a cena é igualmente indesejada. São os mesmos, ainda que sejam outros. Às vezes, um jato forte de água. Porém, a dispersão é rapidamente interrompida. Recolhidos os pertences da véspera, ajeitam-se com os restos possíveis. O instinto fala mais alto. É o que resta para a sobrevivência. Parecem espectros. E as horas passam mais silenciosas, evitando, assim, nova investida profilática em benefício da cidade.
O corpo move sem respeitar o seu dono. Frio, calor, tremores que não cessam. Fecha-se no material desgastado que o protege de um possível olhar inquiridor. Faz um esforço enorme, mas não consegue organizar bem os pensamentos. “Nasceu ali ou era esse o destino?”, questiona em meio ao entorpecimento. Difícil dizer de qual doença o corpo padece. Imagens distorcidas são recolhidas de forma insistente, como último recurso para organizar a vida. “Veio de onde e de quem?”, e fecha os olhos para lembrar. Recolhe alguma coisa de uma casa pobre, com muitas vozes. Tem nas mãos um brinquedo feito de madeira. A voz feminina se destaca. Sente o hálito quente muito perto da face e, em segundos, a água quente cobre todo o corpo empoeirado. A cama é dura, mas cheira a limpo. Naquele lugar, não sente frio entre os outros que disputam o espaço. “Vim de algum lugar.”, afirma. Sente medo. Não tem notícias deles. Houve choro na partida de alguém. “Faz tanto tempo.”, lamenta.
Agora, mãos o sacodem bruscamente. Pedem documento. Gagueja. “Eu sou. Posso dizer ao senhor. Eu lembro.”, mas não querem ouvir. Pedem o documento. “As coisas não são desse jeito. Tá me entendendo?”, troveja a voz. E o corpo é tomado de novo entorpecimento. Tudo se confunde. Os olhos se embaçam. Quer obedecer. Tenta ficar de pé, mas os movimentos são involuntários. Uma pressão forte prende seus braços. Dor. De repente, há gritos do outro canto. Encolhe-se até sumir na escuridão, para livrar-se de tudo.
Horas, dias, o tempo de dentro e de fora. Num caco de espelho, fim de um retrovisor partido, identifica fios brancos no cabelo ralo. Precisa sair dali. Um pedaço de cobertor e papelão. Sem documento. “Eu sei quem eu sou.”, diz para o pedaço de espelho. Com cuidado, abre o pano roto, colocando o vidro no centro. Após tudo organizado, levanta-se com seus pertences debaixo do braço. Analisa a rua. Sente as pernas mais firmes. Do torpor da noite, restam dores musculares, no entanto, é necessário andar. O corpo resiste. Depois de alguns passos, mira a morada de muitas noites. Sente falta da casa. No entanto, para qual casa seguir é pergunta-enigma. Com os olhos bem abertos, entende que parte da resposta está no pedaço de retrovisor. Abraça o pacote com toda a força. Passado e presente. O agora e o que tiver de vir. Assim será. Ciclos.


Sem tropeços

Anestesia
