Os supersalários de médicos da Prefeitura de Mariana

Em 2019 pelo menos 18 servidores receberam acima do teto. Quantias inconstitucionais ultrapassam meio milhão de reais

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Arte: Mariana Paes/Agência Primaz

R$ 54.643,27. Isso é o que consta no Portal da Transparência como remuneração pessoal recebida por um único médico de Mariana em julho de 2019. A quantia ultrapassa em 129% o estabelecido pela Constituição Federal, que limita os salários dos servidores municipais ao recebido pelo chefe do Poder Executivo. Os rendimentos de Duarte Jr., prefeito de Mariana, no mesmo mês foram de R$ 23.813,92.

Se fosse uma situação isolada, os valores irregulares recebidos por esse servidor em setembro de 2019 teriam custado a mais aos cofres de Mariana R$ 30.829,25. Porém, a reportagem da Agência Primaz apurou que este não é um caso isolado. Pelo menos 18 servidores tiveram salários superiores ao que recebeu o prefeito Duarte Jr, em algum dos meses de 2019.

Nesta reportagem, analisamos os dados obtidos em investigação no Portal da Transparência e conversamos com Federico Nunes de Matos, professor de Direito Administrativo, para entender a inconstitucionalidade dos salários recebidos pelos médicos. Também fizemos contato com a Prefeitura de Mariana, responsável pela contratação e pagamento dos servidores, e com a Câmara Municipal, principal agente fiscalizador das ações do Executivo na cidade.

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A denúncia inicial

Na terça-feira (23), o Portal Ângulo divulgou uma denúncia de supostas irregularidades nos vencimentos de um servidor da Prefeitura de Mariana. Na denúncia, o servidor teria recebido mais de R$ 35 mil reais de salário em setembro de 2019, pouco mais de R$ 11 mil acima dos vencimentos do Chefe do Executivo. 

A partir daí a Agência Primaz de Comunicação realizou uma investigação nos dados públicos da Prefeitura de Mariana e descobriu que os valores recebidos e a quantidade de beneficiados de forma inconstitucional são muito maiores. Somadas, as quantias recebidas de forma indevida chegaram a R$ 575.511,74‬ e a classe médica é a grande beneficiária.

Os dados encontrados no Portal da Transparência

Estabelecendo como primeiro filtro os salários recebidos por Duarte Júnior em 2019, constatou-se que 23 servidores municipais tiveram rendimentos pessoais superiores ao recebido pelo chefe do Executivo. Todos os contracheques em que constam esses rendimentos pertencem a médicos lotados na Secretaria de Saúde de Mariana. 

Apesar de aparentar, nem todos os valores superiores ao teto constitucional foram recebidos de forma indevida. É o caso, por exemplo, de recebimento de 13º salário, adiantamento de férias e verbas indenizatórias. Assim, após nova filtragem e minuciosa análise dos dados, constatou-se o pagamento irregular de pelo menos 18 servidores.

Os valores correspondem a salários, descansos semanais remunerados (D.S.R.) e gratificações (como biênios e quinquênios), entre outros benefícios. Dois médicos, um efetivo e uma contratada, são os recordistas. Ambos receberam valores considerados inconstitucionais em quase todos os meses de 2019.

O servidor efetivo recebeu salários acima do permitido em 10 meses de 2019, além do 13º. As quantias em junho e julho, ultrapassam os R$ 50 mil mensais. Os valores indevidos somados chegam a R$ 201.498,31. Já a servidora, contratada pela Prefeitura por meio de contrato temporário, recebeu acima do teto constitucional em 11 meses de 2019. Somados, os valores irregulares recebidos por ela chegam a R$ 159.293,08‬.

Também impressiona a carga horária mensal executada por esses servidores ao longo de 2019. Somente em outubro, dividindo-se o valores recebido exclusivamente pelas horas trabalhadas pelo valor/hora mencionado no edital de contratação por processo seletivo simplificado, a servidora contratada teria trabalhado 340 horas, o que corresponde a 75 horas semanais ou 14 dias de trabalho ininterruptos. Já o servidor efetivo, de acordo com o contracheque de julho, recebeu vencimentos horistas de mais de R$ 40 mil e descanso semanal remunerado de mais de R$ 7 mil. Mesmo com carga horária alta este servidor mantém consultório médico instalado em outra cidade.

No edital do processo seletivo simplificado, realizado em abril de 2019, consta que a jornada de trabalho do pessoal da área de saúde é de 20h semanais. Já a jornada dos médicos plantonistas é de 8h diárias e 44h semanais, podendo ser estabelecido em acordo e ou Convenção Coletiva de Trabalho, o regime de plantão de 12×36, 12×48, 24×72, dentre outras.

Arte: Lui Pereira/Agência Primaz

O total irregular pago em 2019, até onde foi possível apurar, é de R$ 575.511,74‬. O valor seria suficiente para pagar quase 1000 auxílios emergenciais,1.050 cestas básicas ou testar quase 10% da população de Mariana, com a aquisição de mais de 5.700 testes rápidos para Covid-19..

O que diz a Constituição Federal de 1988

O artigo 37 da Constituição Federal estabelece, em seu inciso XI, o teto permitido para os salários de servidores públicos em todo o território nacional. O texto diz que o salário de qualquer servidor público “incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito”. Ou seja, no caso das prefeituras, nenhum servidor municipal pode receber mais que o chefe do Poder Executivo.

De acordo com o professor Federico de Matos, do Departamento de Direito da UFOP, os valores devem ser analisados mês a mês, levando-se em consideração todos os rendimentos pessoais recebidos, exceto indenizações. “O que o STF tem já pacificado é que, entraria no teto a retribuição de caráter pessoal do servidor. Eu excluiria do teto aquelas parcelas de natureza indenizatória. Por exemplo, auxílio moradia, auxílio-transporte, auxílio-creche, auxílio-funeral. Todas essas verbas ficariam de fora do teto constitucional, pois a administração pública estaria indenizando aquele servidor por alguma razão”.   

No caso dos servidores de Mariana, Federico acredita que apenas os adicionais de insalubridade e noturno não estariam enquadrados nas contas sobre o teto constitucional. “Descanso semanal remunerado, biênios e quinquênios entram no teto.Tudo isso é retribuição pessoal” explica o professor.

Federico também comenta os motivos de os grandes beneficiários dessa irregularidade serem médicas e médicos. O professor relata que a situação já o preocupa há alguns anos, desde uma das muitas mudanças de redação do artigo 37 da Constituição Federal, principalmente, quando o subsídio dos prefeitos foi incluído como teto nos municípios. “Estávamos discutindo em sala de aula, salvo engano, uma reforma da previdência proposta no Governo Lula. Eu lembro que eu falei na época que esse subteto vai dar problema lá no município e o problema vai ser Saúde. A gente sabe que os vencimentos do pessoal da área de Saúde, principalmente médicos, são médias salariais mais altas do que é a média dos outros cargos públicos no Brasil”, diz Federico.

A minha preocupação na época não era com um município como Mariana, que tem uma arrecadação até expressiva. Mas eu ficava pensando no município pequeno de 5 mil, 10 mil, 15 mil habitantes, onde o prefeito ganha R$ 11 mil, até R$ 9 mil. Como trazer um médico para esse município? (Federico Matos)

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Quem deve fiscalizar?

No âmbito das fiscalizações dessas irregularidades, Federico indica duas frentes, uma interna e outra externa à prefeitura. Internamente, é de responsabilidade da Controladoria Geral do Município acompanhar as iniciativas tomadas pelo Poder Executivo. Fora da Prefeitura, cabe ao Poder Legislativo, ou seja, a Câmara Municipal, a responsabilidade de fiscalizar os processos de contratação e pagamentos de servidores. 

Em busca dessas respostas, fizemos contato com alguns membros do Poder Legislativo marianense. Nenhum dos 4 vereadores consultados tinha conhecimento da irregularidade apontada na reportagem do Portal Ângulo e, por isso, não quiseram comentar o assunto. 

Um deles foi o vereador Geraldo Sales que prometeu cobrar explicações da administração municipal e informou que a Câmara ainda não analisou a prestação de contas relativas ao ano de 2019. Segundo ele a documentação foi encaminhada no final de março e será discutida e votada assim que for recebido o parecer da Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCMG). 

O vereador Edson Agostinho, presidente do legislativo marianense, informou que a fiscalização é feita quando há uma denúncia ou um requerimento específico de algum vereador, mas que, rotineiramente, isso só é feito nas prestações de contas anuais. Em relação ao controle interno da administração municipal, nossa reportagem não conseguiu contato com Rodrigo Ferreira, responsável pela Controladoria Municipal.

O que diz a Prefeitura de Mariana

A Agência Primaz encaminhou, nesta quinta-feira (25),vários questionamentos à Prefeitura de Mariana, mais especificamente à Secretaria Municipal de Administração. Em resposta recebida no final da tarde desta sexta (26), a secretária Arlinda Gonçalves informou que “o Município está elaborando Decreto, para regulamentar o desconto no pagamento dos servidores que, eventualmente, façam jus a remuneração superior ao subsídio do Prefeito Municipal”. Também informou que, no prazo de 120 dias uma comissão de processo administrativo deverá concluir um relatório com a investigação dos “pagamentos de natureza remuneratória, em discordância com o disposto no art. 37, inciso XI da Constituição Federal, nos últimos 05 anos”, incluindo “sugestão de minuta de Decreto regulamentando o desconto da remuneração dos servidores que exceder o subsídio do Prefeito” e também a apresentação de “parâmetros para realizar a correta alteração do sistema, para que o sistema automaticamente identifique os casos irregulares e proceda ao desconto correto”.

Embora os casos de irregularidades verificados sejam de 2019, Arlinda informou que o “Município de Mariana alterou a forma de remuneração dos profissionais médicos, cirurgiões-dentistas e professores da educação básica anos finais do ensino fundamental, por meio dos novos Planos de Cargos, Carreiras e Vencimentos (PCCVs) previstos nas Leis Complementares 194/2019 e 195/2019, visando maior controle e transparência dos gastos de pessoal”, mudando a forma de remuneração desses profissionais de horistas para mensalistas. O problema é que as leis complementares citadas pela Secretária de Administração foram sancionadas em dezembro de 2019, depois portanto das várias irregularidades apontadas por nossa reportagem. Outra informação repassada por Arlinda Gonçalves é que “em decorrência da pandemia, e da escassez de médicos, foi necessário a contratação de mais plantões para suprir a necessidade do município e não deixar a população sem atendimento”, apesar do questionamento estar relacionado aos pagamentos feitos no ano passado, antes do início da pandemia provocada pela Covid-19 em Mariana.

Quanto às cargas horárias, regime de contratação e remuneração dos profissionais de saúde, a Secretaria de Administração alegou que “o levantamento dos dados solicitados depende de desarquivamento de documentos e relatórios que serão gerados no sistema da folha de pagamento”, prometendo encaminhar as informações no início da próxima semana. Quando isso ocorrer a Agência Primaz fará uma atualização desta reportagem.

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