Editorial: Pandemia e informação

100 dias de Covid-19 em Mariana

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Os números, quando torturados, confessam qualquer coisa”. Esta frase, com algumas variações, tem sido dita muitas vezes nos últimos meses e fica rondando minha cabeça várias e várias vezes. Até tentei buscar a origem e o contexto no qual ela foi dita pela primeira vez, mas confesso que desisti depois de algum tempo e, assim, faço aqui a citação já pedindo antecipadamente desculpas por não fazer a citação correta.

Mas, antes que eu seja mal interpretado, não pretendo discutir ou fomentar teorias conspiratórias de subnotificação dos casos da Covid-19 em Mariana. Isso porque não tenho o menor indício de que esteja havendo algum tipo de ocultação de números e estatísticas, deliberadamente ou não. Portanto, não vejo nenhum sentido em afirmações do tipo: “Ah, tenho certeza que a situação é pior do que falam”, sem que exista algo plausível para embasar isso.

Na verdade, minha intenção aqui nem é discutir números, mas sim a forma e a qualidade das informações divulgadas. Em termos de forma, a Secretaria de Saúde optou por fazer uma comunicação direta com a população marianense desde o dia 17 de março. Assim, pelo menos nas primeiras semanas, observou-se um verdadeiro dilúvio de postagens de vídeos nas redes sociais, além das famigeradas “lives”. Mas também atenderam aos órgãos de mídia, deram entrevistas e se esforçaram ao máximo para passar ao público as informações.

Aí alguém pode me perguntar: “Mas então você está reclamando de quê?” A minha resposta, já previamente ensaiada, é que, pelo menos em princípio, não tenho nada contra a comunicação direta entre servidores públicos e cidadãos e cidadãs. O que me incomoda é a eficiência dessa comunicação, uma vez que poucas vezes ela permite o questionamento e o contraditório.

Nas “lives” geralmente ocorre a repetição exaustiva das mesmas perguntas e respostas, estas últimas algumas vezes evasivas. Sem contar que a centralização de informações e de poder de fala em poucas pessoas, muitas vezes prejudica o fluxo de informações. É bastante comum que fiquemos à espera de informações durante dias, já que não existe a figura de um porta-voz, credenciado e conhecedor do que ocorre em cada setor da administração pública. Aí é querer demais do titular de cada pasta, que precisa de dar conta de suas obrigações e responder a todas as demandas.

Mas, no caso de Mariana, isso não começou com a pandemia, é uma prática que, conscientemente ou não, vem sendo implementada há anos. A Prefeitura vem, cada vez mais, se tornando não só produtora de conteúdo, mas também o agente de divulgação, reduzindo a participação da mídia ao papel de mero reprodutor de releases, ou de um cachorro que corre atrás da própria cauda, sempre a reboque daquilo que é mais “interessante” ser discutido. Ressalto aqui que, por experiência própria, tenho a convicção que esse procedimento não parte dos profissionais da comunicação que trabalham na administração municipal. Aliás, nem tenho certeza se há uma norma escrita ou diretrizes nesse sentido. É bem provável que o fascínio pelas redes sociais seja a origem desse comportamento, e não faltam exemplos disso em nosso país, não é mesmo?

Repito: nada contra a comunicação direta entre eleitos e eleitores, mas considero que muita coisa se perde nesse processo.

E isso me leva ao outro aspecto que acho interessante discutir, agora sim diretamente relacionado à pandemia. Trata-se da qualidade da informação, e é bom que isso fique bastante claro: não se trata de quantidade de dados, mas de informações que permitam melhor análise do transcorrer desse penoso processo. Algumas informações não são reveladas, supostamente por decisão do Comitê Gestor da crise. Seria leviano de minha parte, ficar insistindo para que fossem divulgados dados das pessoas cujos testes deram resultado positivo para a Covid-19, tais como nome e endereço. Respeito a privacidade dessas pessoas e considero correta a posição adotada. Mas não consigo concordar com o manto de segredo que cobre algumas outras informações. Para ficar apenas em dois exemplos, qual a razão para não haver uma ampla divulgação dos estabelecimentos comerciais autorizados a empreender a retomada de suas atividades? Isso não é do mais alto interesse público? Outro exemplo é a divulgação do gênero e faixa etária das pessoas que são consideradas como casos suspeitos de contágio, mas sem manter esses dados quando o resultado do teste é positivo. Não seria do interesse de todos que se soubesse em que faixa etária, pelo menos em nosso município, as pessoas estão mais suscetíveis ao coronavírus? Se esse dado não fosse importante, para que informar quando o caso ainda é suspeito?

Eu disse que daria apenas dois exemplos, mas não resisto à tentação de acrescentar mais alguns. Qual é a taxa de pacientes sintomáticos entre os casos confirmados? Quais as características de idade, gênero e condições anteriores de saúde dos que já são considerados recuperados? Quantos testes rápidos realizados pelo município deram resultado negativo?

Os questionamentos são muitos e, infelizmente, as respostas são muitas vezes evasivas ou não convincentes. Em consequência disso, aumentam as chances de utilização de métodos de tortura dos pobres coitados dos números que, dependendo de sua incompletude, ou de como são manuseados, podem sim confessar qualquer coisa, deixar a população com informações incompletas e, pior, alimentar a criminosa onda de fake news.

(*) Luiz Loureiro é jornalista e editor-chefe da Agência Primaz de Comunicação

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