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“Corram, homens! Encontrei uma mina de ouro!” Por mais que não pareça, esse sou eu performando o que eu imaginava ser o coronel Salvador Furtado, que hoje dá nome à rua dos bancos aqui em Mariana. Na ocasião dessa gravação, eu aceitei um convite da Íris Ventura e pude contribuir um pouquinho com o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) dela.
A Íris publicou, como produto de conclusão do curso de Jornalismo na UFOP, uma série em formato podcast que conta um pouco da história de Mariana para o público infantil. A série, narrada pela princesa que dá nome à cidade, mas que nunca pisou aqui, constrói diálogos fictícios entre pessoas que existiram, além de fazer interfaces entre acontecimentos de temporalidades diferentes da história da cidade.
Essa foi a forma que a Íris encontrou para a abordar com as crianças alguns temas nada leves, mas muito importantes da Primaz de Minas, como a escravidão e o rompimento da barragem da Samarco em 2015, por exemplo. Aí eu te pergunto: nem tudo o que é narrado na série aconteceu do jeito que está lá, isso desvaloriza ou invalida o trabalho?
De prontidão, eu mesmo te respondo que não. O trabalho desperta reflexões importantíssimas nos pequenos e é de uma beleza que, mesmo que não tivesse todo o rigor de pesquisa que tem, valeria pela sensibilidade, pelo cuidado, pela estética. Enfim, valeria “só” pela arte.
Ou seja, a série da Íris tem valor pelas reflexões que promove, pelas vidas que transforma, pelas prosas que inicia e impulsiona, pelo patrimônio imaterial que preserva, pelas memórias que constrói e por um monte de outras coisas que carecem mais estudo.
Mas, e no caso do jornalismo? Há espaço para sensibilidades, recursos literários e outras lógicas narrativas que fogem do que acostumamos a ler, assistir e ouvir nos grandes veículos de comunicação? Aliás, existe algum registro jornalístico que não esteja encharcado de subjetividades e outras forças por trás desse relato?
Para início de reflexão, parto da ideia de que a narrativa jornalística goza do privilégio de portar-se como uma guardiã da verdade, como aquela que mostra ao público os fatos como eles de fato aconteceram. Essa vontade, ou presunção de verdade, como diz o filósofo francês Paul Ricoeur, separa, apenas para fins de algumas análises, as narrativas históricas das fictícias.
Em Tempo e Narrativa, o autor defende que contar uma história é um ato judicatório. Ou seja, ao contarmos uma história, seja ela qual for, sempre deixamos escapar traços de nossas subjetividades, de nossos juízos de valor. Jamais conseguiremos narrar um acontecimento em todas as suas perspectivas e sem tomar nenhum partido, ainda que tenhamos presenciado o ocorrido de perto.
No campo do “ver-como”, nós jornalistas, emprestamos nossos olhos, ouvidos e interpretações para transportar o leitor àquele acontecimento. Ainda que busquemos, não podemos esconder vestígios de nossa autoria. Entretanto, Ricoeur defende uma perspectiva fenomenológica da narrativa. Ou seja, os textos não se encerram em sua escrita, podendo inaugurar novos acontecimentos depois de publicado. Assim, é na leitura que se constrói a estrutura de diálogo entre o mundo do texto e o mundo do leitor.
“Uai, mas então a gente não precisa do jornalismo, já que ninguém fala a verdade como ela é”. Desculpa a sinceridade, mas se isso veio à sua cabeça, você está pensando completamente errado, querido leitor ou ouvinte otário. Nós não precisaríamos do jornalismo se ele não tivesse uma peça que o materializa para além de um conceito: o jornalista.
Nunca foi tão importante o trabalho sério de jornalistas quanto agora, em tempos de fake news e pandemia. Percebemos, enfim, que uma apuração bem-feita pode salvar vidas ou escancarar os responsáveis por ceifá-las. Por isso, sempre que posso, saio em defesa das disciplinas de Ética e Crítica de Mídia no curso de Jornalismo, por exemplo.
Fazer jornalismo não tem nenhuma relação com escolher assuntos a esmo e divulgá-los primeiro. Mais que falar sobre um assunto, é fundamental que o nosso trabalho busque atender ao interesse público, sempre que nos propormos a publicar qualquer matéria, notícia ou reportagem.
Como diz a frase de William Randolph Hearst (atribuída erroneamente a George Orwell): “Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade”. Isso vai de encontro aos combinados (ou contratos de comunicação) que estabelecemos com quem lê os nossos textos.
No caso da Íris, ela não quebra os contratos e deixa claro, a cada episódio, quais são os pilares de seu produto comunicacional. No meu caso, tento fazer o mesmo pelo lado do jornalismo regional: visar o interesse público, prezar pela apuração jornalística de qualidade e tentar ouvir o máximo de vozes possíveis sobre cada assunto. Não me preocupo em ser o primeiro a dar uma notícia, mas tento fazê-la da forma mais completa diante de minhas condições de produção.
Antes de você desistir de esperar pelo que “verdadeiramente importa”, eu te digo: o que importa é o diálogo, é a transformação de mundos promovida pela interação entre os sujeitos. É o conhecimento que se cria e se transmite nessas situações de comunicação. E para nós, leitores, continuarmos lendo e descobrindo mundos é preciso que, nós, escritores e jornalistas, continuemos construindo e revelando esses mundos, a partir do que lemos e vivemos todos os dias.
(*) Marcelo Sena é jornalista e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFOP