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Hoje é quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Agentes de saúde e de endemias denunciam precarização

Em fala livre na Câmara Municipal de Mariana, representantes dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Agentes de Combate às Endemias (ACE) cobram pagamento do Incentivo Financeiro Adicional (IFA)

Agentes de saúde e endemias de Mariana protestam na câmara municipal
Karolina Alves dos Santos, Natália Duarte e todos os servidores das ACE’s e ACS’s exigem prestação de contas do dinheiro público que deveria ser destinado a eles - Foto: Eduarda Belchior/Agência Primaz

Durante a 34ª Reunião Ordinária da Câmara Municipal de Mariana, realizada na última segunda-feira (20), Karolina Alves dos Santos e Natália Duarte, ambas Agentes Comunitárias de Saúde (ACS), usaram a tribuna após pedido de quebra de protocolo feito pelo vereador Marcelo Macedo. Representando os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e os Agentes de Combate às Endemias (ACE), elas denunciaram as condições precárias de trabalho e a ausência de transparência sobre o repasse do Incentivo Financeiro Adicional (IFA), verba federal que deveria ser repassada diretamente à categoria. 

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Segundo as agentes, o município de Mariana recebe o recurso federal desde 2019, mas o valor nunca foi repassado aos profissionais. O IFA é uma parcela anual extra, criada para valorizar o trabalho dos agentes, e não deve ser confundida com o 13º salário. O piso salarial da categoria é totalmente custeado pela União, por meio do Fundo Nacional de Saúde, que repassa 12 parcelas anuais equivalentes a dois salários mínimos. Como os agentes são contratados CLT, cabe ao município arcar com as obrigações trabalhistas, como férias, vale-alimentação, insalubridade e o 13º. O incentivo financeiro, portanto, é uma verba suplementar e não pode ser usada para cobrir despesas obrigatórias do contratante. 

Projeto de Lei barrado e falta de resposta do Executivo

O vereador Ronaldo Bento, durante a 23ª Reunião Ordinária da Câmara de Mariana do dia 04 de agosto deste ano, apresentou o Projeto de Lei n °301/2025, que visava regulamentar o pagamento do IFA em Mariana. O texto, no entanto, foi barrado pela Procuradoria da Câmara, que alegou se tratar de matéria de competência do Executivo. Desde então, os agentes aguardam que o prefeito Juliano Duarte, encaminhe uma proposta semelhante.

De acordo com as servidoras, duas reuniões já foram desmarcadas pelo Executivo. “Reuniões e reuniões desmarcadas. No caso são duas já, e tudo em cima da hora, mesmo a gente ligando para perguntar ‘Está confirmado?’. Eu acho que eles não estavam nem se lembrando da reunião”, declara Natália. E, mesmo no dia em que ocuparem a tribuna livre da Câmara, saíram sem uma resposta assertiva sobre prazos ou sobre a data de uma nova reunião com o Executivo. 

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Sistemas e recursos perdidos

Além da falta do IFA, as agentes relataram problemas estruturais e administrativos que afetam o funcionamento do sistema de saúde municipal. O sistema contratado pela prefeitura, o SIDIN, é apontado como um dos principais gargalos. Ele não exporta corretamente as produções diárias, o que impede o registro das visitas e faz o município perder repasses federais. 

Para contornar as falhas, os profissionais passaram a usar o aplicativo e-SUS, desenvolvido pelo Governo Federal. Mas, segundo Helen Cristina, agente comunitária de saúde no bairro Cabanas, o aplicativo funciona somente em telefones androids, o que impossibilita o uso por parte de todos os trabalhadores da categoria. Diante disso, os agentes comunitários reforçam a necessidade de equipamentos como tablets para o desenvolvimento de suas funções em tempo real. “Esse tablet também já é antigo desde 2022 que eles falam que vai vir, mas nunca vem”, conta Helen.

Helen Cristina, representante das agentes municipais de saúde e endemias fala na cãmara de Mariana
Helen Cristina, relatou que no bairro Cabanas trabalham apenas 15 agentes comunitários, e que, devido ao rápido crescimento da área, deveriam ser no mínimo 30, fazendo com que o serviço de saúde seja somente o básico por conta da alta demanda - Foto: Eduarda Belchior/Agência Primaz

Sem tablets ou celulares corporativos, os agentes usam seus aparelhos pessoais e pacotes de internet, e destacam que essa prática compromete a privacidade e o descanso fora do expediente, já que mantêm contato direto com centenas de pacientes, recebendo mensagens e ligações fora do horário de trabalho. 

Falta de estrutura e adoecimento

As falas das ACS ‘s também revelam um quadro de adoecimento e insegurança entre os trabalhadores. Uniformes e Equipamentos de Proteção Individual (EPI’s) estão em falta desde 2022. “Eu entrei em 2022, a gente recebeu duas blusas de uniforme e uma calça e a partir disso a gente vem pedindo uniforme, pedindo protetor solar e nunca chega. A única coisa que eles falam é que quando tiver no estoque iriam mandar, mas aí nunca mandam”, desabafa Helen Cristina.

As agentes também disseram que no dia 3 de setembro deste ano, a Secretaria de Saúde relatou que elas teriam os uniformes até o dia 15 de outubro, mas na reunião do dia 20, já após o prazo previsto, avisaram que a entrega seria para o dia 30 de outubro.

Na zona rural, as condições são ainda mais severas. Alguns ACS e ACE precisam se deslocar mais de 10 km para chegar em uma residência e mais 10 para voltar, e ou você vai a pé ou usa seu meio de transporte próprio, ficando exposto a todo tipo de mudança climática. “Dar uma blusa e uma calça não garante segurança. A gente lida com sol, chuva, lama, terrenos acidentados e não tem botas adequadas, capa de chuva ou protetor solar realmente eficaz”, pontuou Natália Duarte. 

Casos de assédio moral e sexual também foram mencionados, o que reforça a vulnerabilidade de uma categoria composta majoritariamente por mulheres e expostas diariamente a situações de risco. Muitas delas atuam sozinhas nas visitas às residências onde, às vezes, vivem apenas homens. Essas experiências, somadas à sobrecarga de trabalho, à falta de reconhecimento e à luta pelo cumprimento de direitos básicos há seis anos, provoca um adoecimento silencioso.

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Outras cidades já regulamentaram

Enquanto Mariana segue sem resposta, cidades vizinhas como Ouro Preto, Itabirito e Congonhas, já regulamentaram o pagamento do IFA por meio de leis municipais. Para as servidoras, a resistência da Prefeitura de Mariana representa falta de vontade administrativa.

Agentes refutam posicionamento da Prefeitura de Mariana

Na reportagem publicada no último dia 18 sobre o mesmo assunto, a Secretaria Municipal de Saúde emitiu uma Nota Técnica alegando que o repasse do IFA é realizado em conformidade com a legislação federal e orientações do CONASEMS (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde). 

A defesa municipal argumentou que o incentivo financeiro federal “integra o valor do piso salarial nacional”, conforme a Portaria GM/MS nº 3.162/2024, e não pode ser considerado uma parcela adicional, mas sim um componente financeiro incorporado ao repasse regular.

Diante disso, a Comissão Representativa dos ACS e ACE de Mariana contrapôs formalmente essa interpretação através de documento enviado à nossa reportagem. O documento aponta uma série de argumentos contrários ao posicionamento da Secretaria Municipal de Saúde que listamos abaixo:

Natureza Adicional do IFA: O Incentivo Financeiro Adicional não é um componente fixo do piso salarial. Ele é reconhecido pela Lei Federal nº 11.350/2006 (art. 9º-C, com redação dada pela Lei nº 13.708/2018) como parcela adicional de repasse anual, vinculada à valorização profissional. As portarias do Ministério da Saúde estabelecem a transferência de incentivo adicional e “não há previsão legal que autorize sua incorporação automática aos vencimentos mensais”.

Hierarquia Normativa: A Nota Técnica do CONASEMS, utilizada como base pela Secretaria de Saúde, “não possui caráter normativo, nem tem força vinculante” perante os municípios. O CONASEMS é uma entidade associativa e não tem o poder de reinterpretar a norma federal para negar o direito ao incentivo adicional. Conforme a Constituição Federal (Art. 59), apenas leis, medidas provisórias e decretos podem criar ou alterar direitos.

Mora Administrativa: A ausência de uma lei municipal que regulamente o IFA não descaracteriza o direito federal. Ao invés disso, a omissão impõe ao Poder Executivo o dever de iniciativa legislativa. A falta de proposta de lei própria configura mora administrativa e não justifica a alegação de “incorporação automática” do incentivo.

Exigência de Provas Contábeis

Diante da alegação de incorporação, a Comissão exige ainda no documento que a Administração Municipal comprove a destinação do recurso. Os agentes solicitam a apresentação de demonstrativos orçamentários com rubrica específica do incentivo federal e folhas de pagamento que identifiquem o repasse.

A Comissão ainda alerta que a ausência desses documentos pode reforçar a tese de que o valor não está sendo repassado e “pode caracterizar desvio de finalidade de recurso federal vinculado”, o que configura infração e potencial ato de improbidade, conforme a Lei nº 8.429/1992. Este entendimento é reforçado por manifestações de diversos Tribunais de Contas Estaduais, como o TCE-PE, que consideram indevida a utilização do IFA para pagamento de obrigações regulares, como o 13º salário.

Foto de Eduarda Belchior
Eduarda Belchior é graduanda de Jornalismo na UFOP e estagiária na Agência Primaz de Comunicação, com interesse em jornalismo cultural, político e de gênero.