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Hoje é quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Onze mil pessoas lutam contra o tempo para não perderem suas casas

Mais de 3 mil famílias correm o risco de terem suas casas demolidas por decisão judicial. Corrida contra o tempo busca solução política para o problema

Ocupação vila serrinha em Mariana
"Quando falou em demolir, imagina essa quantidade de pessoas descendo tudo pro centro pra buscar um aluguel, cê acha que mariana acomoda esse tanto de família aqui?", afirma Bruna Mendes, moradora da ocupação Vila Serrinha. - Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Com estimativa de cerca de 11 mil pessoas em risco de remoção, as ocupações da Cidade Alta se tornaram símbolo de uma cidade onde a especulação imobiliária, a permissividade política e a ausência de planejamento habitacional se encontram. Para os moradores, não se trata apenas de resistir à ordem de despejo, mas de reivindicar dignidade: um teto e acesso pleno a todos serviços públicos essenciais garantidos por lei.

A solução, segundo eles, não virá apenas da Justiça. Ela depende da decisão do Executivo municipal de negociar com os proprietários, como a Mina da Passagem, e de assumir a habitação como política pública prioritária. Enquanto isso não acontece, as famílias seguem construindo com o que têm, carregando nas paredes de tijolo cru a esperança de um futuro que ainda não chegou. “Se me tirarem daqui eu vou fazer minha casa no cemitério, e se não tiver jeito de ir pro cemitério, eu vou fazer minha casa lá na prefeitura.”, brinca Graziela dos Anjos, moradora e comerciante da região.

Como parte da mobilização, moradores e apoiadores promovem uma concentração em defesa do direito à moradia neste domingo, às 10h, na Arena Badaró.

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Uma história de negligência

Em abril, em decisão proferida nos autos do processo nº 5000662-39.2019.8.13.0400, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) rejeitou os argumentos da Prefeitura sobre a inexequibilidade do acordo e determinou a execução forçada, cabendo ao Ministério Público apresentar alternativas. Estima-se que cerca de 11 mil pessoas vivam hoje nessas áreas, um contingente populacional impossível de ser absorvido sem grande impacto pelo mercado formal de habitação da cidade.

No último dia 25, no mesmo processo movido pelo Ministério Público contra o município, um acordo teria sido firmado há mais de cinco anos e previa remoção de famílias, reassentamento, demolição de construções e recuperação ambiental. Nenhuma das medidas foi cumprida. 

Na 30ª Reunião Ordinária da Câmara Municipal de Mariana, realizada no último dia 22, o tema das ocupações esteve no centro dos debates. Na Tribuna Livre, José Maximiliano, conhecido como Max, um dos representantes dos moradores das ocupações da Cidade Alta expôs a preocupação das famílias diante das notícias sobre possíveis demolições em áreas ocupadas.

O assunto também ganhou força com o Requerimento nº 143/2025, de autoria do vereador Marcelo Macedo, que questionava a execução do acordo firmado em 2019 entre o município e o Ministério Público. O parlamentar levantou dúvidas sobre a efetiva participação popular no processo e sobre a viabilidade do prazo estipulado para a retirada das famílias, que foi de apenas um ano. Além disso, indagou se houve diagnósticos técnicos prévios envolvendo áreas como Ação Social, Defesa Civil e Planejamento, e de que forma seriam feitas as compensações ambientais previstas no acordo.

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Para Marcelo Macedo, a ausência de políticas habitacionais agrava a situação. “Na verdade, ninguém tem condição financeira de comprar um lote na área central, então é questão de oportunidade. Mariana precisa urgente de ter um programa habitacional, que não teve, e foi prometido pelo mesmo prefeito que assinou o acordo para retirar as famílias em 2020.”

Apesar do apoio unânime manifestado pelos vereadores às famílias presentes, Maximiliano demonstrou ceticismo quanto à efetividade das declarações. “É saber se essa Câmara vai fazer história, dar um basta nisso ou vai ser apenas mais uma. Porque esse discurso que nós tivemos lá, todos os 15 vereadores falando que apoiam, nós já ouvimos várias vezes, não é novo não”, afirma.

Morador na ocupação
“O povo precisa entender, que se a gente não tiver uma mobilização popular, que pressione o governo ou que reivindique o direito de habitação, nós nunca vamos ter uma solução”, afirma Max, morador e um dos representantes dos moradores das ocupações. - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Diante da insegurança e da possibilidade de retirada, os moradores das ocupações têm se mobilizado de forma organizada. Foram criados grupos de WhatsApp divididos em setores, cada setor com quatro representantes. Uma comissão também foi formada para dialogar com autoridades locais. Segundo Max, a comissão se reuniu no último dia 25 no gabinete do vereador Preto do Cabanas e busca abrir agenda com o prefeito Juliano Duarte.

“Criamos uma comissão que vai sentar com o Juliano para conversar, ninguém quer 11 mil pessoas contra, e o poder do eleitor é o voto. Nossa luta segue organizada e ordeira, buscando uma agenda agora com o Prefeito”, reforça.

Caminhos possíveis

O consenso entre os moradores é de que apenas uma saída política poderia evitar um colapso social, já que o aluguel social é insuficiente e não há sequer espaço para acomodar as famílias nas casas já existentes ou ainda a possibilidade de um reassentamento dessas pessoas em um horizonte próximo.

Alternativas como a regularização fundiária (Reurb), esbarram em restrições ambientais e na necessidade de concordância do proprietário. Outras propostas, como a aquisição coletiva do terreno por intermédio da Prefeitura, ou loteamento popular, proposto na administração interina de Ronaldo Bento, nunca foram adiante.

José Maximiliano, clama por uma solução política que possibilite uma saída pacífica para o conflito, com o intermédio da Prefeitura: “Estamos à mercê do Juliano Duarte. Toda a habitação da Serrinha está nas mãos da benevolência e misericórdia do prefeito. Não tem como ser a favor disso(as ocupações), é vergonhoso. Mas mais vergonhoso ainda é ouvirmos de desembargador que invadimos sabendo da ação. Nós não somos criminosos, vou sair pra trabalhar daqui a pouco, mas me mostra qual outra opção eu tinha?”, desabafa.

Max ainda reivindica que o poder municipal veja os bairros também através de um olhar econômico, pelo fato deles abrigarem grande parte dos trabalhadores do município e por ter sido destino de grandes investimentos desses mesmos trabalhadores: “Não se engane, essas ocupações também geram riqueza ao município. Quando eu compro tijolo, eu pago imposto. Há um benefício econômico embutido nisso. O que falta é vontade política para enfrentar o problema de frente”, esclarece.

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Ocupação por necessidade

Pés de uma criança na ocupação vila serrinha em mariana
“A gente fica apreensiva né, a gente fica com medo de chegar uma máquina aqui a qualquer momento e derrubar nossas casa que fizemos com tanto trabalho, com o suor de uma vida inteira praticamente e não temos pra onde tá indo, tudo que nós tínhamos, investimos aqui”, diz Sandra, mãe e moradora das Ocupações. - Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

A vida nas ocupações de Mariana é marcada pela dificuldade e pela adaptação forçada. Com a maioria das ruas sem calçamento algum, alagamentos em dias de chuva e a falta de infraestrutura transformam o cotidiano em um desafio constante. “Até parece que a gente ia querer morar assim. Quando chove, esse trem dá um barro danado, não passa carro. Se tivesse como comprar um lote no asfalto, lógico que a gente ia preferir, pagando tudo certinho. Mas não tem condição, Mariana é muito cara”, relata Bruna de Fátima dos Anjos, comerciante, mãe de quatro filhos, que deixou claro, durante a entrevista, que foi a necessidade que trouxe ela e a sua família para a Vila Serrinha.

Mae com suas duas filhas na ocupação vila serrinha em mariana
“Mas é isso né gente, construindo no sufoco e eles querendo tirar”, afirma Bruna de Fátima, moradora das ocupações. - Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

A decisão judicial obriga o município a reassentar as famílias das áreas ocupadas, mesmo que através de aluguel social. Na prática, porém, quem depende do benefício enfrenta dificuldades que contradizem essa promessa. “Antes a prefeitura pagava né, um aluguel social, hoje em dia nem isso mais eles pagam, só que, parece que eles começaram a atrasar aluguel e aí hoje em dia, se você chegar, ‘aí vou alugar uma casa’, aí cê fala com a pessoa que é aluguel social da prefeitura, o pessoal nem aluga mais, porque eles nao pagam, atrasam, ai não da moradia”, relata a comerciante.

“A gente não tá aqui porque quer, fomos empurrados pra cá e Deus sabe todas as coisas. Sei que em nome de Jesus, vai dar certo”, diz Sandra, mãe de duas filhas, que deixou a área rural, para vir com a família e erguer uma casa na Vila Serrinha. Sandra revela o ponto central dessa realidade: enquanto famílias lutam por um espaço para viver, a ausência de uma política habitacional consistente, e a permissividade histórica do poder público, abriram terreno para que a cidade crescesse na informalidade.

Nas últimas décadas, Mariana se expandiu sob uma lógica de permissividade em relação às ocupações. Bairros hoje consolidados, como Rosário, São Gonçalo e Morada do Sol, nasceram como invasões e foram posteriormente regularizados pelo poder público, não houve em todo esse tempo, nenhuma iniciativa de construção de casas ou loteamentos populares no município. 

Essa prática transferiu à população a responsabilidade em encontrar moradia e o ônus de abrir ruas, instalar esgoto e erguer casas em ocupações, enquanto o município apenas formalizava a posse anos depois. “Igual as ruas, aqui tudo foi construído pelo braço da gente. Isso tem um encanamento de água, uma rede de esgoto passando. Isso aí é tudo que a gente investe. Até os calçamentos das ruas foram feitos pela gente, cada um ajudou de uma forma. Tudo aqui é na força do braço mesmo”, afirma Bruna Mendes, moradora da ocupação Vila Serrinha.

moradora bruna na ocupação vila serrinha em mariana
“Isso aqui que ta acontecendo agora na serrinha, ta como se nós fossemos os invasores, como se a gente tivesse começado isso aqui, a gente pegou o bonde andando, isso aqui já está acontecendo há quantos anos”, questiona moradora Bruna Mendes. Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Nesse contexto, se para o Estado a situação é uma disputa jurídica, para as famílias que vivem nos terrenos trata-se de sobrevivência. Emerson, pedreiro, esposo de Bruna Mendes, viu sua primeira casa ser derrubada na ocupação do Gogô, mas não desistiu. Foi na Vila Serrinha que conseguiu uma área para a família. Questionado sobre o que faria se fosse novamente removido, desabafa, “vou ir pra onde? Até debaixo da ponte já tá ocupado com os outros, né? Só Deus mesmo. Igual todo mundo aqui tem sonhos. Mesmo sabendo que vai derrubar, ninguém para de construir. A gente vai pegando com Deus, né?”, desabafa.

Pedreiros em construção na ocupação Vila Serrinha
“Aqui não é todo mundo que consegue construir uma casa com estrutura, então quantas famílias aqui estão correndo perigo de desabamento”, afirma Emerson, pedreiro e esposo de Bruna Mendes. Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Sua esposa, Bruna Mendes, também enfrenta a incerteza com os filhos de 9 e 12 anos: “Construí minha laje porque eu tenho dois filhos, o futuro deles pode ser ali perto de mim. Como que uma pessoa vai derrubar esse monte de casa assim? A gente tá aqui porque não tinha outro jeito.” E completa, “meu filho tem 12 anos, e daqui quando ele tiver 22, 23 anos, isso aqui ainda vai estar desse jeito. Esse negócio de vai num vai, daqui um tempo você pode voltar e isso aqui vai tá do mesmo jeito, só que com mais casas”, afirma.



Entre o rompimento da barragem e as ocupações

O acesso à moradia em Mariana é um desafio histórico que se agravou nas últimas duas décadas. O crescimento populacional, aliado à dependência da mineração, expôs a fragilidade do planejamento urbano e tornou ainda mais difícil o direito à habitação digna. O rompimento da Barragem de Fundão, em novembro de 2015, se tornou um divisor de águas nessa crise.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população do município cresceu cerca de 30% nos últimos 20 anos, o equivalente a 14 mil habitantes. O avanço foi impulsionado tanto pela atração de empregos no setor mineral quanto pela migração de famílias atingidas pelo crime ambiental. O resultado foi a elevação do preço de terrenos e aluguéis e a proliferação de ocupações em áreas sem infraestrutura adequada.

A tragédia da Samarco, controlada pela Vale e pela BHP Billiton, aprofundou o problema. A lama destruiu comunidades inteiras, como Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, deixando centenas de famílias desabrigadas. A chegada de milhares de novos trabalhadores aumentou a pressão sobre a demanda por moradia. 

Por quase dez anos, os atingidos foram levados a morar em casas alugadas, custeadas pela Fundação Renova, hoje extinta, criada para reparação de danos. Por mais que os assentamentos estejam em fase de conclusão, com grande parte das famílias reassentadas, o mercado imobiliário ainda resiste à nova realidade, de um menor número de habitantes na cidade.

Nesse cenário de preços elevados e lentidão nas soluções oficiais, as ocupações urbanas surgem como resposta imediata de famílias que, sem condições de acessar o mercado formal, recorrem a esses espaços como única alternativa para garantir o direito básico à moradia.

Roupas no varal na ocupação Vila Serrinha em Mariana
“Tem idoso em cadeira de roda, senhor de idade que não fala, não anda, depende dos outros pra empurrar na cadeira de roda, eles não tem coração não sô”, afirma moradora. Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Permissividade e especulação imobiliária

Enquanto o número de moradores cresceu cerca de 30% nos últimos 20 anos, a expansão urbana permaneceu tímida, ocorrendo principalmente por meio da ocupação de terrenos pertencentes à Companhia Mina da Passagem (CMP). O resultado é um mercado imobiliário pressionado, em que aluguéis antes acessíveis chegaram a dobrar de valor, empurrando famílias de baixa renda para áreas de risco ou irregulares.

José Maximiliano critica: “Nós estamos há mais de 25 anos sem uma política habitacional em Mariana. O reurb resolve um problema já existente, mas não atinge tudo. Houve permissividade do poder público para que essas invasões acontecessem. É a política habitacional da cidade, porque não existe outra.”

Max também denuncia a ligação entre ocupações e política. “Há inclusive financiamento político nesses locais. Tem muita gente que vai lá, pede ao vereador que votou: ‘me arranja aí um tijolo, um bloco’, e a pessoa ganha. Já tivemos prefeito visitando ocupação, dizendo que deixaria a rua larga para depois, quando regularizasse, ônibus conseguir passar. Isso dá uma esperança, né?”, relata.

Apesar de existir um acordo judicial de remoção, reassentamento das famílias e reparação ambiental, não houve qualquer movimentação nesse sentido. O fato de um dos processos seguir ativo desde 2008, sem cumprimento da reintegração, escancara essa permissividade, que favorece a expansão das ocupações em Mariana e abre caminho para a especulação política e imobiliária. A reportagem entrou em contato com a Prefeitura de Mariana para esclarecer os desdobramentos do processo, questionando os motivos do não cumprimento do acordo, a previsão para sua execução e o plano de reassentamento. Até o fechamento deste texto, não houve resposta. 

A Agência Primaz já acompanha as ocupações em Mariana há anos, e desde então nada foi resolvido. Em reportagem publicada em 26 de abril de 2020, o então vereador Juliano Duarte havia protocolado um requerimento solicitando às autoridades e à gerência da Mina da Passagem medidas para evitar ocupações na região da Serrinha, área de preservação ambiental. Apesar de aprovado, o encontro previsto nunca ocorreu, e as cercas continuaram no local. À época, Duarte alertava: “Espero que esses órgãos possam tomar as medidas o mais breve possível e que essas cercas possam todas ser retiradas, ou a gente vai perder um dos locais mais bonitos que é a região da Serrinha”, reforçou ele 5 anos atrás.

Foto de Joyce Campolina
Joyce Campolina é graduanda em Jornalismo pela UFOP, apaixonada por Jornalismo Cultural e Político, fotojornalismo, audiovisual e por contar histórias que precisam ser ouvidas