Saudade danada de ser criança
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Ouça o áudio de "Saudade danada de ser criança", da colunista Andreia Donadon Leal:
O tempo está em velocidade acelerada. Minha sensação é a de que sempre estou sem tempo. Sem nenhum tempo para pensar nas tempestades idas. Foram raios e trovões aventados pelas vielas de seixos rolados. Eu sei que eu devia estar em Barerema, mas o Eldorado está sempre do outro lado da montanha. Nessa expectativa, cumpro a missão de rabiscar crônicas. Os temas, no entanto, parecem estar do outro lado da montanha, mas nas redes sociais falam em fogachos da menopausa. Olhei para o espelho; percebi mais um punhado de rugas no canto dos olhos, são pés-de-galinha. Estiquei a pele flácida, tentando, inutilmente, abrandar as linhas de expressão. Inútil. Não estou triste. Já fui muito mais triste do que sou. A gente se acostuma com os lutos que a vida nos impõe. Cada dia que se passa, eu acumulo lutos e saudades. Eu sei que a arte de escrever, pintar e modelar são válvulas de escape para a mente e potência para a criatividade.
Encontrei um beija-flor despedido de vida no terraço. Gritei, não foi de susto, mas de tristeza. Não consegui socorrer o pássaro; ele não me deu sinal que estava em perigo. Por isso, as lágrimas rolaram em meu rosto. Eu precisava pegar o corpinho do beija-flor depressa. Os alunos estavam na porta de casa, para visitar minha galeria e me entrevistar. Chamei meu marido para recolher o corpinho do beija-flor. Nunca tinha visto um beija-flor sem vida. Fiquei petrificada com o acontecido. Limpei as lágrimas. Eu não poderia demonstrar para as crianças, que estava afetada pela tristeza. O beija-flor escolheu minha casa para o seu último pouso. Haveria um propósito divino? Um aviso? Um ar de mistério no fato? Ou simplesmente, acaso? O pássaro entrou por alguma fresta da janela procurando pouso em um local seguro. Pode ser, pode não ser. Não importa. A gente deveria saber lidar com as surpresas da vida; nem tudo é cronometrado por algoritmos e previsões da ciência. Creio nos acasos. Creio nas coincidências simples. Creio no traço do destino. Creio, ainda, nos desígnios de cima. Nenhuma folha cai de uma árvore sem a permissão divina. O beija-flor foi autorizado a desfalecer no meu terraço. Ele fala com Deus. Ele é livre; mais livre do que nós.
Meu marido subiu para recolher o beija-flor. Pedi para enterrá-lo em nosso canteiro. Ele vai se unir à terra e revigorar o viço das flores.
Abri a porta da casa. Havia doze crianças e duas professoras me aguardando. Convidei-as para entrar. Expliquei que hoje era um dia especial. Receber crianças é um regalo divino. Elas passaram parte da tarde comigo. Conheceram meus quadros, falamos sobre arte, poesia e inspiração. Criança tem tanta inspiração e criatividade que dá gosto de ver. Senti uma saudade danada de ser criança. Tempo não tem marcha à ré. Ré só na memória, no hipocampo do nosso cérebro. O sucesso da criatividade dependerá do hipocampo da inspiração. O hipocampo da escola para o novo projeto de arte é a professora criativa. E assim vai fortalecendo todos os hipocampos em sentido estrito e figurado.
Falei das pareidolias nas ALDRAVINTURAS. As crianças riram ao ouvirem a nova palavra. Elas procuraram imagens nos borrões de tintas. A criatividade delas estava em dia. Sorri. Continuamos o périplo na galeria. Subimos até o terraço para um bate-papo. Olhei para o local onde o beija-flor deu seu último suspiro. Uma criança me puxou pelo braço. Esqueci da morte súbita do pássaro. Sentei-me para contar histórias de faz-de-conta. Faz-de-conta que a alma de um beija-flor está bem aqui nos ouvindo… De repente, o tempo voou!

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