O Véu da Diplomacia não se sustenta com ilusões
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Ouça o áudio de "O Véu da Diplomacia não se sustenta com ilusões]", de Matheus Augusto Sampaio:
Causou-me incredulidade ler a coluna do dia 13 de setembro de 2025 (“Assassinaram a Diplomacia”), assinada por nosso bibliotecário local. Não pela reafirmação do óbvio — o absurdo que é o assassinato de Charlie Kirk e a brutalidade daqueles que comemoram a execução pública e fria de um orador, na frente de sua filha —, mas pela ingenuidade presente no discurso.
Talvez por passar tempo demais cercado pelo magnífico acervo da Biblioteca Municipal Benjamin Lemos, o sr. Alexandre Amorim tenha se esquecido do país em que vive. Em março de 2018, a vereadora Marielle Franco foi executada friamente — de forma menos espetacularizada, ainda que igualmente brutal — no Rio de Janeiro.
Em um mundo ideal, democrático, de livres ideias, todos lamentaríamos, independentemente da posição política, um assassinato brutal como esse. Afinal, Marielle atuava justamente contra a violência nas comunidades pobres do Rio. Porém, no mundo real — aquele que encaramos ao sair dos confortáveis sofás azuis da biblioteca marianense —, figuras da extrema direita tripudiaram, caluniaram e até construíram carreira política em cima do ataque a uma mulher assassinada. Fora do Rio, Marielle sequer era amplamente conhecida ou tinha suas políticas debatidas em âmbito nacional; o que importava era que vinha de outro campo ideológico.
Nós vivemos nesse país. E agora, o decadente império estadunidense experimenta o mesmo desconsolo. Há tempos, a “terra da liberdade” deixou de transmitir ao mundo a ideia de pluralismo de ideias. Há tempos, o extremismo e a violência se transformaram em método aberto — e não mais velado — de ação política. O cruel assassinato de Kirk é mais uma evidência dessa ferida exposta. E aí, realmente, não há idealismo que resista: o frágil véu da diplomacia não se sustenta com ilusões.
Diferentemente da imagem quase canonizada de Charlie Kirk, apresentada pelo Bibliotecário — agora mártir da extrema direita (aqui, ao contrário do G1, eu não tenho medo em usar esse rótulo, amparado por evidências) —, a defesa da “liberdade” para ele durava até a página dois. Basta lembrar: quando o marido de uma oponente política, a democrata Nancy Pelosi, foi atacado brutalmente em casa por um homem armado apenas com um martelo, Kirk se dispôs, em live, a pagar a fiança do agressor.
Outra vez, declarou que, ao entrar em um avião com um piloto negro, torceria para que ele fosse qualificado — fala de teor explicitamente racista, em um contexto sobre o aumento de cotas para pessoas negras em determinados locais. Em outra ocasião, afirmou que pessoas negras “saíam à procura” de pessoas brancas como alvo — discurso supremacista, coerente com sua adesão à tese do Great Replacement, uma teoria conspiratória que alega, sem base em fatos, que elites culturais e políticas estariam promovendo imigração em massa e políticas de diversidade para substituir a população branca nativa por minorias.
O que Kirk fazia não era diálogo: era manipulação. Que debate uma pessoa negra pode propor quando é chamada de incapaz ou agressiva? Talvez apenas no auge do eugenismo existisse esse “debate”. Não se discutia nos midiáticos debates estrelados por ele a importância histórica de uma figura ou a relevância de suas ideias, mas a própria capacidade de um indivíduo de determinada etnia. Não há debate: há a promoção pública de ideias violentas, que justificaram séculos de colonialismo e agressão. Essas ideias se mantêm vivas, graças a esse tipo de abordagem. Como lembrou Karl Popper, a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da própria tolerância.
Eu sou um homem negro. Provar que sou capaz não é debate nem pluralismo: é apenas uma terça-feira comum de sobrevivência em um Estado racista. Diferente dos EUA, aqui o racismo ainda se disfarça sob um véu decadente de ilusões.
Não responsabilizo as falas de Kirk por seu assassinato. Não é verdade que ele colheu o que plantou, uma vez que, seus alvos nunca foram seus iguais. Talvez por isso, em raras e trágicas ocasiões em que o agressor sofre violência, alguns — como o nobre bibliotecário — percam as ilusões do diálogo. Nada como o medo e a identificação com a vítima para devolver a visão e convocar à ação.
E agora, com o idealismo em frangalhos, ao invés de justificar a vingança da extrema direita, perceba, sr. Amorim: vivemos em um país onde a violência contra quem luta pelo verdadeiro pluralismo é muito mais visceral. Nos últimos dois anos, sob um governo supostamente de esquerda, cerca de 55 ativistas de direitos humanos foram assassinados no Brasil, e foram registradas 486 ocorrências de violência contra esses agentes.
Use sua coluna, não apenas para chorar a morte de um homem branco e cristão como o senhor, mas também para chorar a morte daqueles que tentam transformar este país em um lugar melhor. Para nós — negros, LGBTQIAP+, militantes de esquerda, ativistas, camponeses — nunca foi dada a oportunidade real de exercer a diplomacia. Por isso é estranho e chocante que só quando acontece com um semelhante ao senhor é que a violência passe a ser vista como fim da história. Nós temos que conviver com ela diariamente.
Se queremos “uma sociedade que viva em paz”, é preciso assumir a responsabilidade coletiva por isso. Não com a farsa de uma “liberdade de expressão” que dá ao extremista uma plataforma para silenciar opositores com mentiras. Infelizmente, foi preciso o choque da brutalidade. Mas que seja ele o ponto de virada: que o senhor e todos os que se surpreenderam com o ocorrido nos EUA façam, a partir de hoje, o possível pelo avanço do diálogo no nosso país. Use sua voz não para chorar por quem não chorava pela morte alheia, mas por aqueles que lutam para que nunca mais ocorram mortes como a de Kirk.

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