O ovo, a galinha e eu
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Ouça o áudio de "O Ovo, a galinha e eu", do colunista Saulo Cameêllo:
Hoje, distraído diante do café da manhã, dei por mim folheando Todos os Contos de Clarice Lispector, até encontrar a heresia que sempre me inoculou: o ovo e a galinha. O pensamento, antes singelo e hermético, tornou-se feitiçaria. Isso é para ser compreendido? Ou será apenas bruxaria que se infiltra pelos olhos e se apossa da alma, travestida de pergunta banal?
Entro na paranoia.
Pego um ovo na geladeira. Vejo o ovo. Digo: ovo. Mas já não é ovo: é tempo. É o ovo de cinco décadas atrás. Não vejo o ovo: vejo sua lembrança, sua impossibilidade, seu som. O ovo se retrai no instante mesmo em que é avistado. É como se fosse uma estrela morta, a luz já chegou, mas a estrela não existe mais. O ovo é sempre passado.
De repente, o ovo se torna espelho. Não por refletir minha face, mas por revelar o que ignoro de mim. Ele me fita em silêncio. Quem olha quem? Eu o decifro ou sou eu o decifrado?
Compreender essas perguntas seria erro. Entender o ovo é matá-lo. Assim também comigo: talvez existir seja não entender. Talvez minha salvação esteja em permanecer equívoco, superstição, coisa não decifrada, espúria.
E há a galinha. Penso na galinha como o disfarce mais triste da perfeição. A galinha é corpo hesitante, tropeço com penas. É a cortina necessária para que o ovo atravesse o tempo sem ser desmascarado. Ela veio depois.
Mas sem ela, o ovo não atravessaria o tempo. A galinha carrega o ovo como quem não sabe que carrega, e é nesse não saber que cumpre o destino. A galinha é sobrevivência, esforço para manter o ovo oculto, intacto. Se sou ovo em mistério, também sou galinha em descuido.
Mas o ovo, inquieto, já não se contenta em ser ovo. É lua. Redondo e suspenso, sem luz própria, indiferente à gravidade dos homens. É pão. Ao ser partido, alimenta, mas ao alimentar desaparece. É amor. Só se reconhece na perda. É Deus. Invisível a olho nu, inalcançável na sua simplicidade excessiva.
E eu? Eu sou o intervalo. O meio-termo entre a galinha e o ovo, entre a fome e a saciedade, entre a pergunta e a impossibilidade da resposta. Vivo numa casca que me contém, mas sei que esta casca é frágil e breve.
Penso, então: Talvez existir seja apenas distrair. Esquecer o ovo para não o destruir. Talvez o maior gesto de fidelidade ao mistério seja este: não o compreender.
Mas, se o ovo é memória, também é futuro. Talvez seja promessa. Talvez seja anúncio. Talvez seja o aviso de que ainda há o que nascer, ainda há o que vir, ainda há o que salvar.
E sorrio: se eu o olhasse demais, perderia a força de acreditar. Melhor ocupação é viver o trivial, varrer o chão, preparar o café, repartir o pão. A distração cotidiana protege o mistério. É preciso humildade para ser apenas galinha.
Ovo
espelho
pão
lua
amor
Deus
Não me importa o nome que receba. O que importa é que sempre escapa, sempre se adianta, sempre me ultrapassa.
E ao fim, quando a paranoia se dissolve em atraso, agradeço àquela que ousou primeiro ver o impossível: Clarice. Foi ela quem plantou esse ovo no centro da cozinha da língua, e me obrigou a devorar a galinha indizível.

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