Carta a um terráqueo extraviado
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Ouça o áudio de "Carta a um terráqueo extraviado", do colunista Saulo Tete de Oliveira Camêllo:
HABITANTE DO PLANETA AZUL, SAUDAÇÕES.
Recebemos, por vias de uma órbita mal calibrada, um sinal barulhento proveniente de sua espécie que sinaliza suas tentativas em tentar decifrar os segredos do cosmos sem sequer compreender a mecânica básica de sua própria existência.
Sabemos que vocês estão engajados em um tipo de “busca pela verdade”, embora, francamente, a forma como manipulam o conceito de verdade se assemelhe mais a um espetáculo de sombras projetado por um data show nas paredes de uma caverna mal iluminada. Ou talvez queira encontrar alguma colônia extrassolar que vossa espécie, em sua sede de expansão, deseje inaugurar uma loja da Prada.
O universo, permita-me dizer, é demasiado vasto, em tempo, espaço e complexidade, para caber em seus telescópios obsoletos e teorias muitas vezes baseadas em egos inflados. Suas tentativas de compreendê-lo soam, para nós, como um coral de protozoários discutindo metafísica.
Venho de um coletivo situado há anos-luz de vocês, e não apenas em distância física, mas em maturidade civilizacional. Aqui, evoluímos além da trágica necessidade de autodestruição e aprendemos a conviver com o conhecimento como ferramenta de cuidado, não de dominação. Obviamente, minha comunicação viola uma série de pactos interestelares que vedam interações com espécies ainda… em gestação de consciência. A Terra, nesse contexto, ainda está no ventre, embora tente, dia após dia, provocar seu próprio aborto.
Considerem esta mensagem uma exceção movida por um exótico impulso de curiosidade antropológica, ou, como diriam vocês, uma concessão honrosa. Um voto de estima, na falta de termo mais acurado.
Sim, vocês são debatidos em nossos círculos: um caso curioso de desenvolvimento técnico sem paralelo crescimento ético. Um experimento biológico cuja arrogância supera em muito sua capacidade de regeneração. A Terra, coitada, ofereceu tudo: atmosfera respirável, água líquida, biodiversidade exuberante, mas o que recebeu em troca? Mineração, plástico, guerras e negacionismo climático. Vocês não apenas habitam o planeta, vocês o devoram.
Aliás, sua epistemologia, se é que podemos chamar assim, é francamente patológica: uma mistura disfuncional de empirismo colonizador, positivismo desalmado e capitalismo extrativista. Criaram instituições para distribuir poder e normatizar o ódio, tecnologias para viralizar a ignorância e religiões para justificar tudo isso em nome de um Deus. Vocês cultivam a ilusão de que podem possuir tudo o que tocam, inclusive o tempo, o corpo alheio e o futuro.
Por aqui, nós aprendemos há eras que lar é aquilo que se cuida, não aquilo que se explora até a exaustão. Nós não invadimos os astros: dialogamos com eles. E viajamos, sim, à velocidade da luz, mas sem a necessidade de sabres laser ou impérios galácticos. Aliás, esse tal de “Star War” de vocês… curioso. Um reflexo honesto de suas prioridades: entre prêmios e guerras, entre egos e explosões. A ficção científica terrestre é, no fundo, um documentário sobre o delírio humano.
Nosso planeta, não o nomearei, pois palavras humanas não o abarcam, é substancialmente distinto. Não nos alimentamos de nossos próprios alicerces. Aprendemos a colher dos astros vizinhos o que necessitamos, e somente o que necessitamos. Planetas que não sustentam vida nos emprestam seus minerais, e em troca os deixamos intactos em sua dignidade de corpos cósmicos.
Aqui, não há castas nem cores preestabelecidas. Nossa sociedade, complexa e em perpétuo movimento, repousa sobre a aceitação radical das diferenças. Não temos uma só raça, uma só fé, uma só forma. Nossas religiões não são instituições, mas experiências de partilha e cuidado, aquilo que vocês chamariam, com timidez, de filantropia. Nenhum dogma nos rege, nenhum altar é mais elevado que o outro. Se alguém se curva, é apenas para ouvir melhor.
E, perdoe-me se ofendo, mas alguns dos seus hábitos… são verdadeiramente assustadores. Vocês enterram alimentos enquanto constroem armas, perseguem os seus com leis medievais, e chamam isso de civilização. Afirmam proteger a vida enquanto institucionalizam sua negação. Chamam de “natureza humana” o que é apenas a persistência de um erro.
Entre nós e vós, há o espelho biológico da vida: há formas, gestos, ritmos, pulsações que se reconhecem. Mas se o corte é social, ético, histórico… a semelhança dissolve-se como vapor entre estrelas. Vocês ainda erguem impérios sobre cadáveres, ainda confundem poder com razão, ainda sonham com conquistas interplanetárias quando nem mesmo aprenderam a cuidar do que têm.
Enfim, não se preocupem. A maioria das civilizações avançadas decidiu seguir sem vocês. Não por medo. Mas por luto.
Devolvo-te, portanto, tua carta extraviada. Não nos escrevam com promessas de aliança. Não desejamos suas missões, suas colonizações, seus contratos. A colonização, essa palavra tão suja de passado e tão suja de presente, é para nós um fantasma a ser evitado, não repetido. O universo é vasto demais para que vosso domínio o alcance. Até que decidam abandonar sua arrogância e reinventar sua forma de estar no universo, continuaremos apenas observando, com um misto de pesar e espanto.
Com um salve estelar,
Um habitante de onde não deves chegar.

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