Comorbidades invisíveis
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Ouça o áudio de "Comorbidades invisíveis", da colunista Andreia Donadon Leal:
São exatamente 14 horas e, aqui estou, imersa em um mar de lençóis, sem a menor vontade de me levantar. As janelas permanecem fechadas, as cortinas cerradas, bloqueando a luz do sol que poderia invadir meu quarto e oferecer um vislumbre de esperança. O médico insiste que é essencial permitir que os raios solares entrem, como se essa simples ação pudesse afastar a sombra da depressão. Mas quem realmente encontra felicidade em um mundo de dores constantes e rigidez muscular? A verdade é que não desejo sair desse espaço que se tornou meu refúgio. As dores me dilaceram, uma tormenta que invade cada canto do meu ser e entristece profundamente minha alma. Sinto-me como se pedaços da minha carne estivessem em chamas, enquanto agulhadas se alojam em pontos sensíveis da pele, uma tortura incessante que se estende por vinte e quatro horas por dia. Não há alívio para essa comorbidade, que se tornou uma parte indissociável da minha vida.
Os analgésicos que tomo parecem impotentes diante da dor lancinante que permeia meu corpo, meus pensamentos e até mesmo meu humor. Vivo dias que se arrastam em um sofrimento indescritível; o sono se transforma em um visitante raro, e a alimentação se torna um fardo difícil de carregar. Disfarço diante de meu marido a dor difusa que me consome, pois não quero que ele se preocupe ou se sinta sobrecarregado com o peso do meu sofrimento. As olheiras profundas e as bolsas sob meus olhos são testemunhas silenciosas da batalha que travo diariamente. Meus colegas de trabalho, cansados de ouvir minhas queixas incessantes, começam a evitar minha companhia. Não sou mais convidada para festas e reuniões; sei que conviver com alguém que sofre de fibromialgia não é fácil. Fujo do trabalho, e quantas vezes já me afastei! Incontáveis. Eles afirmam que minha presença atrapalha o andamento do setor e, em um momento de lucidez, concordo. Por isso, decido pedir demissão do meu cargo efetivo. É uma escolha dolorosa, mas talvez assim eu possa me sentir um pouco melhor. Agora, não preciso mais me levantar da cama para trabalhar. Contudo, a dor continua a ser minha companheira, e o desejo de não ser um fardo para os outros pesa sobre mim. A fibromialgia me venceu.
Meu psiquiatra sugere que eu faça ginástica e acupuntura, mas meu corpo se recusa a se curvar. Caminhar se torna uma tarefa árdua. Antes de falecer, minha mãe me presenteou com um óleo potente, um remédio que ajuda a suavizar os formigamentos e as pontadas. Ele traz algum alívio, mas não elimina essas dores implacáveis. A aceitação ainda é um desafio; não consigo aceitar que a fibromialgia seja uma doença incapacitante, uma deficiência cruel que não se manifesta de forma visível. É uma condição que não aparece em exames como raio-X ou ressonâncias magnéticas. Essas fibras pontiagudas e nervosas existem, estão presentes, e não são fantasmas ou invenções da nossa mente.
Travo lutas diárias com a fibromialgia, mas muitas vezes ela me vence, desferindo socos e rasgos na minha pele. Levanto-me, forçando um corpo que caminha encurvado e sem energia. De tanto ouvir que a dor é “só coisa da minha cabeça”, começo a acreditar que estou perdendo a sanidade. “Esta dor não existe; é fantasia da sua cabeça!” Peço a uma benzedeira que me ajude, acreditando que pode afastar o mau-olhado que parece me seguir. No entanto, as dores não desaparecem. Procuro um padre para me benzer e confesso meus pecados, implorando a Deus que retire as agulhas e facas que rasgam o meu corpo. Mas as dores continuam. Os exames de sangue revelam resultados normais. Talvez a loucura realmente tenha tomado conta de mim. Em um momento de desespero, peço ao meu marido que me interne em uma clínica. Não tenho desejo de viver, mas amo a vida. Por isso, decido me internar numa clínica psiquiátrica. “Ali é local para doidos”, pensam alguns. Mais um estigma que enfrento.
Na clínica, testemunho e não me assusto com mulheres que recebem sonoterapia, uma terapia evoluída, segura e indolor, quando os medicamentos não fazem mais efeito para a depressão. Convivo com esquizofrênicas, catatônicas, suicidas e ex-usuárias de drogas que, após a sonoterapia, saem recuperadas. A psiquiatra da clínica me escuta com atenção e, pela primeira vez, uma mulher não desmerece minha dor, não afirma que estas sensações são irreais ou que se trata de vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Não! É a fibromialgia. A dor existe! Os formigamentos, as agulhadas e as facadas pontiagudas estão lá, em partes difusas do meu corpo. Não estou louca.
Com o tempo, os medicamentos e os tratamentos multidisciplinares ajudam a abrandar as dores, embora elas ainda persistam. De tempos em tempos, retornam com força, mas aprendi a aceitar que sou fibromialgésica. Aprendi que o preconceito ronda as esquinas da sociedade e as áreas de trabalho. Que possamos, juntos, cultivar a atenção e o respeito às pessoas, independentemente de suas lutas e condições físicas ou psíquicas. Afinal, cada um de nós carrega batalhas invisíveis que merecem mais que compreensão e empatia; merecem respeito. Difícil, porque somos adestrados para respeitar só o que é visível e esteticamente aceito pela sociedade julgadora! O resto é corpo-mole.

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