Portal de lembranças
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Ouça o áudio de "Portal de lembranças", da colunista Andreia Donadon Leal:
O som distante de um carro na rodovia quebra o silêncio da noite. Meus pés estão gelados. Parece que apenas esse veículo percorre a estrada. É meia-noite e treze minutos. Esses treze poderiam me causar um leve sobressalto, se fosse uma sexta-feira treze. Mas não é o caso. O frio é intenso; mais do que no ano passado. Apostei que o tempo não guardava memórias; que engano! O tempo retoca minhas nostalgias, trazendo à tona épocas em que eu dormia sob dois cobertores, com virol, pijama de manga longa e meias de lã. Gosto do frio. O inverno me encanta. Recordo das noites na casa dos meus pais, quando minha mãe preparava canjica ou mingau de fubá com queijo derretido. Eu e meus irmãos aguardávamos ansiosos o aviso dela, de que o “caldo doce de inverno” estava pronto. E então, corríamos como flechas. Meu irmão mais velho quase saltava sobre nossas cabeças, sorrindo de felicidade e expectativa. Ele sempre chegava primeiro, apenas para esperar sentado. Saboreávamos a canjica como se fosse a refeição mais deliciosa do mundo. E realmente era! Quem diria que o tempo passa como um tornado, levando nossos pais para outra vida? Acreditamos que conseguimos reter o tempo em nossas mãos. Acreditamos, erroneamente, que o tempo caminha ao nosso lado, a nosso favor. E quando menos esperamos, ele nos surpreende, alterando nossa rotina. Os cabelos começam a ficar brancos e ralos, o corpo se torna mais frágil, e a mente já não guarda nomes e lugares; amigos e parentes vão se despedindo da vida. Mas esta não é uma crônica de desilusão ou desesperança. De forma alguma, desejo amargar a vida. É apenas uma noite fria, no final de junho. A rodovia se encontra em um silêncio sepulcral. Meu marido dorme profundamente, enquanto eu escuto a quietude da noite. Não há, absolutamente, nenhum grito, diálogo ou movimento na rua. Abro a porta da varanda com cautela. Respiro o ar gelado e olho para o céu esmaecido pelas luzes da cidade. Nenhuma estrela ou lua à vista. Fecho os olhos e me concentro na saudade que me aperta o peito. Ando um pouco triste, é verdade. Ainda não me acostumei com a ausência dos meus pais. Aberto o portal das lembranças, vejo minha mãe cantando enquanto cozinha a canjica; sua energia vibrando pela casa. Concentro-me na imagem gravada em minha memória. Toquei os cabelos avermelhados e finos dela. Ela sorri e pergunta se estou com fome. Eu confirmo. Minha mãe pega um prato transparente, coloca a canjica fumegante e entrega-o a mim, mandando me sentar para comer. Ela se senta, olhando-me com aquele amor que transborda. Fecho os olhos novamente. Respiro fundo, tentando prender aquele momento com a mais intensa concentração. O portal se fecha. O vento uiva. Um galo canta. Dois homens passam pela rua, falando alto; retornam do trabalho. Abro os olhos. A rodovia adormece. Sinto o aroma da canjica e uma fragrância de jasmim no ar. Fecho a porta da varanda da saudade, calço minhas meias de lã, borrifo essência de lavanda no travesseiro e apago a luz. Minha mãe veio me visitar nesta fria noite…

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