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Hoje é segunda-feira, 2 de junho de 2025

Literatura, quae sera tamen

Discurso proferido pelo bibliotecário Alexandre Amorim no 2º dia da 5ª Semana Estadual de Incentivo à Literatura, realizada em abril de 2025

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”

5ª Semana Estadual de Incentivo à Literatura

Ouça o áudio de "Literatura, quae sera tamen", do colunista Alexandre Amorim:

Acredito que, depois de presenciar o que aconteceu ontem, dia 23 de abril de 2025, no primeiro dia do “Literatura, quae será tamen[1], desejar boa noite será algo que parte somente do trato social e da educação, pois se depender da qualidade do que estamos prestes a atender, trata-se apenas de mera e simples redundância.

E, talvez eu esteja me direcionando para uma plateia inédita, muito diferente daquela que esteve aqui conosco ontem e pode presenciar as excelentes conversas que tivemos com nossos convidados, talvez. Mas mesmo se, desafiando a chance e a sorte, eu pudesse retornar a falar com as mesmíssimas pessoas, repetiria que este evento iniciou como um dos que me deu mais orgulho em toda a minha carreira como Bibliotecário.

Mas, no caminho de volta para casa, além da pergunta que foi proposta pela Iva[2], no encerramento do primeiro dia, tive a oportunidade de realizar uma entrevista com a gentil e simpática Maria Teresa, que cobriu o evento para a Agência Primaz[3], a qual eu participo como colunista eventualmente.

Conversando com ela e falando sobre o evento, uma das falas da Iva me veio à cabeça constantemente: de que este tipo de eventos são criados para pessoas que JÁ GOSTAM de literatura.

De que talvez os eventos de Incentivo à Leitura deveriam buscar olhar pelas janelas das Instituições, pelas portas das Secretarias e entre os painéis da burocracia que busca, incessantemente, engessar ações que ampliem a compreensão geral da população ao ponto onde regulações tornam-se desnecessárias pelo desenvolvimento cívico, literário, intelectual e comportamental de suas respectivas populações e comunidades.

Talvez um ouvinte mais atento possa estar se perguntando agora: “Mas poxa, Alexandre, o que este discurso tem a ver com o tema das palestras ou mesmo com qualquer especialidade ou conhecimento dos convidados?”

Tem a ver com a indissociável relação entre as artes, a literatura e a liberdade.

Tem a ver com a fala da Professora Guiomar de Grammont[4], que ontem nos lembrou da força simbólica contida na palavra “LIVRO”.

Ao longo da história, ainda que “livro” e “liberdade” não compartilhem uma etimologia direta, a palavra liber, em latim, passou a evocar, por força cultural e histórica, a ideia de emancipação.

A leitura e o conhecimento tornaram-se caminhos privilegiados para a libertação — pessoal, social, política — e essa associação simbólica entre liber (livro) e libertas (liberdade) consolidou-se especialmente a partir do Iluminismo, atravessando as línguas românicas como o francês e chegando até o nosso belo português.

Portanto, meus caros ouvintes, ações de Incentivo à Literatura possuem um sentido insidioso à qual lhes deixo exposto claramente agora: trata-se de uma ação de incentivar a população a tornar-se livre.

De desatar os nós e quebrar os grilhões mentais que fazem com que a pergunta do senhor Júlio César Vasconcelos[5], meu colega colunista, também na Agência Primaz, exerça grande peso de reflexão: “Por que textos literários feitos com cuidado, esmero e muita cautela não são tão populares e interessantes quanto várias postagens que vejo pululando nas redes sociais?”.

Ela deveria fazer sentido e deveria acender um sinal de alerta em todas as mentes capazes de entender o que a redução da interação humana a meros likes e coraçãozinhos fazem com o cérebro e intelecto humano.

De que no retorno de pesquisas realizadas pelo mundo inteiro, demonstrando que nosso maleável e adaptável cérebro está se adaptando com velocidade incrível[6] às tecnologias da informação que estão disponíveis em todos os celulares e computadores, 24 horas por dia, para quase a totalidade da população mundial, também reside a preocupante informação de que a capacidade de atenção está se reduzindo cada vez mais e cada vez mais drasticamente, tornando novamente o que a nossa palestrante de ontem, a Iva, falou como algo alarmante:

“Qual será o futuro de quaisquer literaturas e leituras que necessitem de comprometimento de tempo para serem realizadas?”[7]

E talvez eu possa, com o perdão de fazer tantas citações de ontem para uma plateia que hoje busca ouvir novas abordagens ao tema, sugerir que uma pergunta os persiga durante todo este evento, e que seja respondida por vocês todos ao final:

“Qual o INCENTIVO À LEITURA que nós realmente queremos?”

Qual é a parcela de nossa população que realmente desejamos que esteja sob a influência do LIBER?

Pensadores de excelência indubitável, como Sir Ken Robinson, havia indicado que o futuro da nossa civilização passaria pela mudança do paradigma da educação[8].

Para ele, o real trabalho de todos os grandes pensadores educacionais deveria estar focado em COMO organizar um sistema de educação e ensino que atenda ao mundo da INFORMAÇÃO, que não despolete diagnósticos virais como TDAH, que é uma doença séria e complexa na qual eu não estou equipado com as informações necessárias para ser taxativo de qualquer forma, mas que Robinson argumentou que, quando os alunos não estão engajados, podem apresentar comportamentos semelhantes aos observados no TDAH.

Isso sugere que os sistemas educacionais devem se concentrar em promover a criatividade e a paixão, o que pode atenuar sintomas que podem ser mal interpretados como TDAH.

Algumas crianças podem, de fato, ter dificuldades com métodos tradicionais de aprendizagem, levando ao desengajamento e a problemas comportamentais. Nesses casos, o que parecem ser sintomas de TDAH pode ser resultado da falta de estímulo ou interesse.

Ken Robinson sugeria que a sociedade como um todo havia observado que era mais simples e prático (ou até mesmo, cômodo) medicar crianças do que considerar que uma reforma no sistema de ensino concebido na época do Iluminismo, para atender à Revolução Industrial era necessária.

E enquanto a Indústria Farmacêutica alegremente concordou com isto e Ritalina[9] (e outros remédios) disparou suas ações, o tempo passou e hoje nos vemos face ao mesmo dilema e, talvez (e este é um grande talvez) uma nova onda viral de diagnósticos, desta vez, relacionada ao Autismo entre outros[10].

Novamente, não estou equipado com informações o suficiente para discutir tais pontos, mas são apenas considerações para diálogos e quem sabe, possa inclusive fomentar pesquisas acadêmicas sobre o assunto.

Finalmente, existiram autores, tais quais David Foster Wallace, que nos deixaram com a seguinte reflexão, a qual cito, e lhes adianto um pedido de desculpas, porque além de Wallace ser um dos meus autores favoritos, esta me é uma passagem muito cara, do discurso chamado “Isto é Água” no Kenyon College[11], em Ohio – na ocasião de uma formatura:

“Na trincheira do dia a dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como “não venerar”. Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar – seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos – é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio – e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.

No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas – e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. […] Diz respeito à consciência – consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor. […]

Desejo a você, mais do que sorte.”

Obrigado pelas suas valiosas atenção, presença e participação.

Sejam todos muito bem-vindos ao segundo dia da V Semana Estadual de Incentivo à Literatura – “Literatura, quae será tamen”.

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[1] Evento realizado pela Biblioteca Pública Municipal Benjamim Lemos, para a V Semana Estadual de Incentivo à Literatura, nos dias 23 e 24 de abril de 2025 e que foi realizado no Museu de Mariana – saiba mais em: https://www.instagram.com/p/DIxFWUIueBT/

[2] Ivanete Bernardino Soares é Professora do Departamento de Letras da UFOP, que vem se dedicando a projetos voltados para a formação do leitor de literatura e com a promoção de hábitos de leitura dentro e fora da escola.

[3] Saiba mais em: https://www.agenciaprimaz.com.br/2025/04/24/estimulo-a-leitura-e-pauta-em-evento-no-dia-mundial-do-livro/

[4] A Dra. Guiomar de Grammont é escritora, dramaturga, curadora de eventos literários e Professora Titular da Universidade Federal de Ouro Preto.

[5] Júlio César Vasconcelos, Mestre em Ciências da Educação, Professor Universitário, Coach, Escritor e Sócio-Proprietário da Cesarius Gestão de Pessoas, além de Colunista na Agência Primaz.

[6] Acesse em: https://www.frontiersin.org/journals/psychology/articles/10.3389/fpsyg.2021.626337/full

[7] Se você se interessou sobre a pergunta, eis uma lista de livros e estudos que podem te ajudar a começar:

“Is Google Making Us Stupid?” – Nicholas Carr (2008);

“Proust and the Squid” – Maryanne Wolf (2007);

“The Gutenberg Elegies” – Sven Birkerts (1994);

“The Late Age of Print” – Ted Striphas (2009);

“Planned Obsolescence” – Kathleen Fitzpatrick (2011);

“Hamlet on the Holodeck” – Janet H. Murray (1997);

“Four Thousand Weeks: Time Management for Mortals” – Oliver Burkeman (2021);

e os artigos:

Elif Shafak – “Given up on reading? Elif Shafak on why we still need novels”, acesso em: https://www.theguardian.com/books/2025/may/11/given-up-on-reading-elif-shafak-on-why-we-still-need-novels e,

Stephen Orr – “Where have all the big books gone?”, acesso em: https://www.theaustralian.com.au/subscribe/news/1/?sourceCode=TAWEB_WRE170_a_GGL&dest=https%3A%2F%2Fwww.theaustralian.com.au%2Farts%2Freview%2Fwhere-have-all-the-big-books-gone%2Fnews-story%2Fc8de218acb2c677829e923b9c393e488&memtype=anonymous&mode=premium&v21=GROUPA-Segment-1-NOSCORE&V21spcbehaviour=append

[8] Acesse em: https://www.youtube.com/watch?v=zDZFcDGpL4U (Possui legendas em português.)

[9] Nome comercial para Metilfenidato. Saiba mais em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Metilfenidato

[10] De acordo com “Saúde Mental em Dados – Edição nº 13 | Fevereiro de 2025”, disponível aqui: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/saude-mental/saude-mental-em-dados/saude-mental-em-dados-edicao-no-13-fevereiro-de-2025/view e diversos estudos sobre Redes Sociais, eis as doenças que podem ser consideradas “virais”: TDAH, Autismo (nível 1), Ansiedade Generalizada, Burnout, Transtorno de Personalidade Borderline, Alta Sensibilidade, Depressão Atípica, Síndrome do Impostor, Dependência Emocional, Transtorno de Ansiedade Social, Transtorno de Despersonalização/Desrealização, Disforia de Gênero, TOC, Transtorno do Comer Emocional, Hipersexualidade, Transtorno de Apego, Transtorno de Trauma Complexo, Síndrome da Geração Burnout, DDA, Neurodivergência. Além disto é necessário considerar o autodiagnóstico e popularização de termos além de influência na autoimagem e comportamento, que são observações de tendências em redes sociais.

[11] Acesse o discurso na íntegra em: https://www.youtube.com/watch?v=xoblutORPNA (legendas em português disponíveis)

Foto de Alexandre Amorim
Alexandre Amorim é mineiro, pai e defensor da utilização de novas tecnologias em prol da liberdade, educação e desenvolvimento cultural da comunidade de Mariana. Estudante perpétuo, é orgulhosamente um bibliotecário e acredita no impacto positivo da leitura para o futuro.
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