Zaratustra no Rio
Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”

Ouça o áudio de "Zaratustra no Rio", do colunista Saulo Camêllo
Descendo a serra de Petrópolis, trago no colo das ideias a companhia inusitada e incandescente de Assim Falou Zaratustra. Não como um tratado a ser dissecado, mas como quem carrega um relicário, uma obra que não me exige compreensão, apenas presença. Nietzsche, com sua verve poética e suas imagens incendiárias, me oferece o que mais desejo neste momento: um intervalo da lógica, uma pausa na linearidade exaustiva do mundo.
Não leio Zaratustra em busca de doutrina; ao contrário, saboreio-o como se fosse um vinho antigo, daqueles que embriagam devagar. Seu texto me agrada porque transborda a sistemática. É bíblia profana, evangelho ficcional, onde o profeta caminha entre montanhas dizendo coisas que talvez não se compreendam, mas que se sentem. Gosto dessa arquitetura literária que remete às escrituras, mas as subverte; que finge pregar, mas implode valores.
A cada página, deixo a mente escorregar para fora da clausura racional. Não é preciso entender: é preciso escutar. Nietzsche me serve como remédio e veneno: alivia o peso do real ao mesmo tempo em que o revela em sua nudez mais crua. E é exatamente disso que preciso agora: escapar da engrenagem da rotina, da lógica que exige respostas, do ruído insistente do cotidiano. Quero esfriar a cabeça, permitir-me esse devaneio filosófico enquanto o mundo lá fora acaba.
Foi então que, absorto nessas digressões, percebi que já me aproximava do Rio. O céu se abria azul, e os aviões cortavam o ar sobre o Galeão. O Rio surgia como uma epifania tropical, entre o real e o mítico, entre o humano e o divino.
A cada curva, o Rio se insinua, primeiro como lembrança, depois como presença. Pelas janelas do ônibus, vislumbro os muros grafitados da Baixada Fluminense, tentativas vãs de maquiar a crueza da desigualdade. O Complexo da Maré ergue-se firme, como profecia encarnada, impossível de silenciar. Mas prometi a mim mesmo um hiato das urgências do mundo. Ainda que o Rio teimasse em me convocar à lucidez, optei pelo descanso.
Ah, Rio. Se o mundo fosse justo, eu te morava. É a cidade que sonha de olhos abertos, que faz da dor poesia e da beleza, espanto. Talvez por isso fosse inspiração para os que mais souberam cantar o trágico com doçura.
À medida que me aproximo da Zona Sul, o Rio troca de roupa. Surge o traço limpo da arquitetura moderna, as linhas brancas cortando o verde ancestral da mata atlântica. O Cristo, braços abertos, parece querer abraçar o céu, enquanto o Pão de Açúcar espreita o mar com a calma de quem já viu tudo.
E eu, estrangeiro de mim mesmo, chego a Ipanema como quem desembarca num poema. Deixo as malas no hotel, tomo Zaratustra nas mãos e vou à praia. A areia me acolhe como um antigo altar, e Nietzsche, sob o sol, continua a falar, não para que eu o entenda, nunca para que eu o entenda, mas para que eu me permita escutá-lo com o corpo.
Nietzsche não me pede fé: pede coragem. Não me oferece consolo: oferece abismo. E o Rio, tão parecido com esse livro, também se oferece assim: belo e perigoso, luminoso e trágico, com suas montanhas como sentenças e seu mar como redenção.
A cidade vibra com a potência dionisíaca que Nietzsche tanto exaltou. Há nela uma embriaguez de vida, de vida que insiste, que fere e que brilha. O caos do trânsito, o grito dos vendedores, o contraste entre o morro e o prédio envidraçado: tudo é excesso, tudo é força. E talvez seja isso o que me atrai. O Rio é um eterno retorno de si mesmo, repetindo alegrias e feridas com uma paixão que desafia a lógica.
O crepúsculo já deitava suas sombras sobre Ipanema quando decidi retornar ao hotel. As ruas, ainda quentes de sol e movimento, se ouvia vozes altas, risos soltos e aquela intensidade que parece fazer parte da alma carioca. Dobro uma esquina e escuto, à distância, um tom exaltado. Por um instante, hesito. Seria o prenúncio de uma briga? Ou apenas mais uma conversa acalorada entre cariocas, cuja linguagem natural parece ser a da efusão?
Era só isso mesmo: efusão. Um pequeno grupo se agrupava em torno de dois homens que discutiam com veemência. Um deles, que se anunciava orgulhosamente como bibliotecário de uma grande instituição, bradava com ares de autoridade que a China era a expressão perfeita de um “fascismo comunista”. A expressão, por si só, já me arrancou um sorriso interno, não tanto pelo conteúdo, mas pelo tom performático do orador. Não me atrevi a intervir: discutir com cariocas é tarefa para os corajosos ou os desavisados.
Mas o rapaz com quem ele debatia não se deixou intimidar. Com elegância cortante, perguntou-lhe como alguém com ideias tão rasas podia ocupar o frontispício de uma biblioteca. Já afastado da cena, não resisti e deixei escapar uma risada franca, dessas que vêm do alívio e da surpresa.
Confesso que conheço pouco sobre a intrincada história da China, e menos ainda sobre as versões falaciosas em discussões de calçada. No fundo, me preocupam mais os fascismos contemporâneos, aqueles que se escondem atrás de cargos públicos e retóricas infladas, e que não precisam atravessar oceanos para nos ferir.
De volta ao hotel, repouso Zaratustra sobre a mesa de cabeceira como quem despede temporariamente um velho mestre. Seus enigmas me esperam, mas agora é o tempo do corpo, e o pensamento, por ora, pode se contentar com o mínimo.
É tempo de vibrar com o Rio, de permitir que a cidade me atravesse como um raio solar ao fim da tarde. Quero surfar suas ondas, mesmo que metafóricas; escalar suas montanhas com os olhos; beber da urbanidade como se fosse vinho jovem, cheio de promessas. Deixar que a boemia me leve pela mão, entre amigos, riso solto e alguma música que embale os sentidos.
Pensar, agora, é gesto de sobrevivência, não de urgência. E sobreviver aqui é quase uma arte ou uma celebração. Daqui, sigo para a Lapa, onde os arcos iluminados parecem sustentar não apenas o bairro, mas toda uma memória viva de encontros, resistências e delírios. Amanhã, quem sabe, vou até a Pedra do Sal. Quero pisar naquele chão onde a história do Brasil é contada em batuques ancestrais e em cantos que desafiam o tempo.
Desejo que o Cristo me abençoe, mesmo que de longe, com seus braços abertos que já não prometem salvação, mas acolhimento. Quero que o Rio me devore inteiro, sem piedade, que me dissolva em seu calor, em sua beleza bruta, em sua contradição sublime.
E quando Zaratustra retornar, que me encontre diferente: com areia nos pés, sal nos poros, e o espírito um pouco mais livre.

Inscreva-se nos grupos de WhatsApp para receber notificações de publicações da Agência Primaz.


Cantoras portuguesas encantam Ouro Preto em Festival de Fado

Política Pública garante dignidade a centenas de mulheres marianenses
