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Hoje é sexta-feira, 9 de maio de 2025

Atrás da janelinha

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Um bolo de milho foi o presente para alguém visto apenas por detrás de uma janelinha

Ouça o áudio de "Atrás de janelinha", da colunista Giseli Barros:

Minha mãe tinha o hábito de acordar bem cedo, com o restinho da noite se desfazendo. Meu pai, depois de tomar o seu banho e de colocar a roupa do trabalho, sentava-se à mesa e me esperava. Eles tomavam o café feito sempre com a mesma medida de pó. Eu gostava de um pouco de leite bem quentinho. Sentíamos ali o amor nos envolvendo. O mundo cabia naquela cozinha simples, com cheiro de café e de bolo de milho. Ah, o bolo de milho era especial. Minha mãe sabia das nossas preferências e preparava o bolo que nos acariciava a alma, para comemorar as datas importantes. Naquela manhã, era aniversário dele. Eu peguei a cartinha escrita na véspera e deixei-a ao lado do pratinho com a fatia ainda quente. Voltei para o meu lugar. Ele só faria a leitura depois que me deixasse na escola.

Foi a minha mãe quem me ajudou a escrever a primeira carta. No chão do meu quarto, ela me deu uma folha de caderno, lápis e borracha. Soletrava as letras, porque eu ainda não formava todas as sílabas. Ao final, as palavras pareciam brincar, fazendo ondas no papel que ficou um pouco manchado de tanto refazer os mesmos traços. Ao final daquele dia, me levou para tomar sorvete. Fiquei muito feliz, porque estávamos comemorando o seu aniversário e não queria que chegasse o momento de dormir. Eu sempre achei que, ao fechar os olhos e a noite apagar o dia, tudo poderia sumir para sempre.

Não sei o que houve. Ela nunca quis me contar sobre o dia seguinte. O café. A escola. Quando voltei, ela estava calada e o seu rosto, muito vermelho. Na hora, não quis perguntar. Tive medo de que brigasse comigo. Coloquei a mochila na cadeira. A vizinha foi quem recebeu a tarefa de me buscar ao final da aula. Lembro de ter falado alguma coisa com ela. A minha mãe era pontual. Quando o sinal tocava, já sabia que veria aqueles cabelos longos e cacheados do outro lado do portão. Abríamos um largo sorriso e voltávamos para casa de mãos dadas. Ao ver a vizinha do outro lado daquela grade de ferro cinza, logo imaginei que tivesse acontecido algo com a minha mãe, mas, rapidamente, a mulher falou sobre um imprevisto. Não sabia o significado da palavra imprevisto. Voltamos em silêncio. Não quis entrelaçar a minha mão à dela.

Por vários dias, a casa ficou silenciosa. Tornou-se frequente, durante os meses seguintes, a presença daquela mulher a me esperar do outro lado da grade cor de chumbo. Eu aguardava ansiosa ver os longos cabelos cacheados. Quando isso não acontecia, retornava desanimada para casa. Respondia a quase nada que me era perguntado. Corria logo para o quarto, esperando o dia terminar. No entanto, as tardes eram longas, porque a mulher permanecia na casa. Esquentava o almoço preparado pela minha mãe, ligava a televisão, e eu comia, fingindo atenção ao que a tela reproduzia. Se pudesse, misturaria-me àquelas vozes que vinham de muito longe, e, talvez, nem voltasse mais. Contudo, os pensamentos logo se diluíam, porque o remorso tomava conta de mim. Chorei muito no colo da minha mãe. Sentia muita saudade dele. Certa vez, ela me disse que ele demoraria a voltar.

As minhas perguntas ficavam, geralmente, sem respostas, como se elas pesassem o ar que respirávamos na pequena casa. Lembro-me de ter feito um pedido, antes de dormir, fechando os meus olhos com muita força. A mulher parou de me buscar. Naquele dia, segurei a mão da minha mãe para nunca mais soltá-la, e sei que compreendeu o meu desejo. A vida continuava. Na nossa casa, não havia música, mas, no nosso entorno, nada deixava de ser. Comecei a brincar com as crianças, enquanto os adultos conversavam. Corria para o banho, assim que a ouvia me chamar. Não desobedecia. Estava contente de tê-la tão perto de mim. Sei que esperava o meu sono para desaguar a sua tristeza, mas eu a ouvia. Tinha medo de que desconfiasse da minha intromissão. Ela também ouvia o meu choro.

Para a minha surpresa, numa manhã, acordei com a casa perfumada. Havia café, leite e bolo de milho. Fiquei quieta, aguardando a fatia ainda quente e o meu copo ser preenchido com o alvo líquido fumegante. Em silêncio, soprava a fumaça, pensando se ouviria os passos dele pelo corredor estreito. A minha mãe, porém, tomou o café e comeu um pedaço do bolo, enquanto organizava as coisas. Do forno, ela pegou outro bolo. Fez um embrulho. Na pia da cozinha, uma garrafa vazia. Vi o café ser depositado nela. Fui com a minha mãe, pela primeira vez, ao seu compromisso de muitos dias. Detrás de uma janelinha de ferro, um homem a atendeu. Eu não conseguia ver nada além de uma parede enorme e de um portão cor de chumbo. Com a voz trêmula, notei mencionar o nome dele. As mãos pegaram o pacote. Voltamos com a sacola vazia e um pedacinho de sonho.

Foto de Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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