Território estreito
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Ouça o áudio de "Território estreito", de Saulo Tete de Oliveira Camêllo:
Na dobra do tempo, a arquitetura se materializa na pedra, e o ouro seca-se no leito dos rios, onde se ergue o território que não vive, mas faz pose de eterno. O chão, talhado à força, é um palco de ribanceiras onde os passos tropeçam em histórias que não se deixam contar. Ante a luz que lambe as fachadas brancas, pesam sombras escuras, de coroas e cruzes, moldadas à custa de suor de preto. No ventre desta terra, escondem-se as veias do extrativismo, um coração que bombeou riqueza para longe e deixou a poeira como herança.
O alto das torres conta quem manda. Olhos de pedra vigiam ruas que não pertencem aos corpos que as caminham. O território é labirinto para quem ousa escapar da linha reta, das fileiras de casarões onde o poder se esconde atrás de janelas de madeira. Cada porta fechada, cada calçada áspera, parece dizer: “aqui, apenas quem couber na história talhada pelos entalhadores.” Não há espaço para corpos-outros, outras vozes, formas-outras de habitar. Aqui, o diverso não tem encontrado abrigo. A rigidez do granito não cede; é barreira, muro, sentença.
O sino, arrogante no alto, toca para lembrar que o tempo não passou. Suas badaladas não chamam todos; é uma voz seletiva, que escolhe quem merece ouvir e quem deve permanecer no silêncio. Enquanto isso, os becos, estreitos como quem os desenhou, sufocam as possibilidades de ser. Os pés tropeçam nas pedras escorregadias que contam uma história de glória para poucos e de escassez para tantos. Mas quem ouve as pedras? Quem lê nos sulcos das ladeiras as mãos que as moldaram e nunca as percorreram?
Perto dali, onde a terra ainda respira em ritmo lento, povos quilombolas tecem histórias com as mãos que cultivam o chão. Não carregam ouro, mas a riqueza que guardam é mais antiga e profunda: o saber de quem escuta a terra, de quem entende seus ciclos e suas dores. Eles não rasgam o solo; acariciam-no. Onde passam, o mundo floresce, mas poucos conhecem.
Esse povo, guardião de raízes e sementes, enfrenta o esquecimento imposto pelo território que ignora mãos livres. São necessários — para o alimento, para a memória, para o equilíbrio — mas permanecem apagados, como sombras em paredes barrocas. Enquanto o extrativismo devora, eles plantam. Enquanto o concreto sufoca, eles cuidam. E, mesmo assim, o território não lhes ergue monumentos; prefere emudecer a força que resiste no canto baixo de suas vidas.
Nas entranhas dessa terra, dorme o ouro que já não pertence a ninguém daqui. O território que se ajoelha nas pedras é o mesmo que esconde, sob a máscara de história, as cicatrizes da exploração. Um rio, outrora serpente viva, tornou-se um rastro de lixo urbano. Ele não canta mais; apenas murmura as vidas que se perderam em sua corrente.
Mas as praças continuam limpas, ornadas por luzes que brilham como se o ouro ainda estivesse ali. É o que parece. Por trás das cruzes altivas e dos arcos triunfantes, há um vazio que ressoa mais alto que qualquer hino cantado nas sacristias. O povo que não coube ficou nas margens, ali onde as ruas se acabam. A praça é para a alta-roda, para famílias que podem caminhar sem medo de que o chão se feche embaixo.
E há o barro. A terra que deveria ser mãe tornou-se ferida aberta, cortada por máquinas que rasgam suas veias em busca de mais uma gota de riqueza. O extrativismo, com sua fome insaciável, apodrece tudo o que toca. Ele prometeu progresso, mas trouxe poeira, doença e desespero. O minério foi levado, mas deixou para trás um vazio que indenizações não preenchem. E, quando não restar mais nada para tirar, o que será do território que só sabe enriquecer de suas ausências?
O extrativismo é um deus cruel: exige corpos, água, florestas. E, em troca, oferece ausências.
Os degraus continuam altos demais, as calçadas estreitas demais, as portas pesadas demais. Para quem enxerga o mundo a partir do chão, o território é um cárcere. As rodas não giram; as vozes que pedem acessibilidade reverberam e se perdem nos muros seculares, o corpo e a performance no poder sempre normativos. Aqui, a memória é seletiva, e o progresso, uma memória positivista. As igrejas se erguem, intocáveis, mas ao redor delas há um mundo que nunca foi bem-vindo.
O ouro que brilhou nos altares não ilumina os becos. As ladeiras, que um dia foram percorridas por escravos carregando riquezas para senhores, hoje continuam a carregar o peso do passado. Nada mudou, nem o nome dos donos. O minério ainda é extraído, mas quem vive lá só conhece o pó e o vazio.
E o sino toca. Não para todos, nunca para todos. Mas ele insiste, ressoa como se quisesse congelar o tempo, como se quisesse impedir que algo mude. As pedras se calam, mas suas fissuras gritam. A quem queira ouvir.

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