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Hoje é quarta-feira, 15 de maio de 2024

Acasos

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Acasos - Crônica de Giseli Barros
Foto: Roman Odintsov/Pexels

Ouça o áudio de "Acasos", de Giseli Barros:

Um papelzinho despretensioso na mesa do bar. Achou a letra bonita, mas preferiu a discrição. Agradeceu a gentileza. Seu drinque era apenas um suco de frutas. Ele ficou intrigado. Não se aproximou. Sorriu de longe. Fez um gesto com a cabeça e saiu. Pegou, então, o bilhete escrito no guardanapo, apreciando cada palavra. Quando a amiga se distraiu, aproveitou o momento para guardá-lo na bolsa. Pediu mais um drinque ao garçom. A amiga considerou prudente a recusa feita minutos antes. Mais uns amigos e a noite costumeira. O caminho de volta. A casa.

Enquanto se preparava para dormir, costurou os acontecimentos da noite com as reminiscências do seu tempo de escola. Uma sala movimentada e crianças correndo. Durante uma brincadeira, no pátio, caiu, ralando os joelhos. Um colega se aproximou e ficou com ela até a professora chegar. Ele permaneceu ali e dividiu com ela o lanche. Estudaram mais uns anos juntos. Ela foi para outra cidade. Voltou depois de um tempo. Eles se encontraram novamente. Na mesma sala, deixavam que os grupos de trabalho se formassem. Gostavam de ficar em duplas. Ele sentia o perfume dos cabelos dela. Ela reparava a letra bonita do amigo. Os dias eram felizes, e fingiam não perceber os olhares alheios.

Numa tarde de muita chuva, a sua carona não veio. Ele a ofereceu companhia. Caminharam pelo bairro. O guarda-chuva acolhia as confidências silenciosas de quem descobria os primeiros passos da vida. Na hora de abrir o portão, ele buscou um beijo. Instante-explosão. Os dois sorriram e ele quis sentir a chuva e o vento. Dali, ela ficou esperando os passos se distanciarem.

A vida continuou.

Pegou o bilhete e analisou a escrita mais uma vez. A caligrafia era a mesma. Ficou pensando por que havia paralisado no bar. O que parecia despretensioso, revelava-se em um instante de muitas lembranças. Descobriu o olhar e o mesmo sorriso. Sim, seria ele o amigo gentil da escola. Calculou os anos entre os encontros. Ele a reconheceu no momento em que a viu. Lembrou-se do perfume, da maneira como ela mexia nos cabelos enquanto falava. Desejou ir até ela. Não teve coragem. Permaneceu próximo ao balcão. Precisava ouvir a voz da namorada da infância. Fez um pedido ao garçom e sentou-se ali mesmo. Sentiu saudade dos intervalos do recreio. A mãe reparava o menino na escolha do lanche. Sempre levava um pouco mais para dividir com a amiga. Sentia-se importante, quando a ajudava em uma tarefa. Agora, o coração lembrava do beijo no portão, da tarde de chuva. Descuidaram-se. Em algum momento, a vida tomou outros rumos. Por fim, desconfiava que o acaso lhes pregava uma peça.

Do lado de fora, uma chuva começa a cair, mansa, trazendo o frescor do outono. Eles nem desconfiam, mas estão os dois, da janela, recordando o portão se abrir, os lábios se tocarem, na esperança de um novo bilhete, de mais um intervalo em descuido, quando o acaso age, inspirado pelo Olimpo, entrelaçando os mesmos desejos.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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