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Hoje é quarta-feira, 15 de maio de 2024

Vestígios

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A porta entreaberta é um dos vestígios da véspera do grande dia do casamento
Foto: Jules A/Unsplash

Ouça o áudio de "Vestígios", de Giseli Barros:

De repente, ficou imóvel. Sentiu o ar quente na nuca. Não conseguiu escapar ao golpe violento. Tudo girava. Mistura de sensações. Confusão mental. Um quarto todo branco. Demorou para entender que estava em um hospital. Na medida em que tomava consciência do próprio corpo, tentava realizar movimentos. Cada músculo latejava. Imediatamente, fechou os olhos para reconstituir os últimos acontecimentos. Sons desconexos. Uma voz conhecida se sobrepunha aos gritos. Não sabia ao certo se era Ela mesma a pessoa que gritava. Uma sirene. Sombras. O quarto branco. Alguém aferia a sua pressão. Mais um frasco de soro e injeções. Mergulhou no abismo infinito de um sono turbulento. Poderia fugir, se fosse possível ter o controle de qualquer ação.

Lembrou-se do dia de sol. Ligações urgentes. Tudo havia sido cui-da-do-sa-men-te planejado. Separou o vestido para as fotos. A roupa dele também estava guardada ao lado do vestido. Não haveria distrações. Recados enviados. O fotógrafo esperava. Era pontual. Ele atrasou. Ela ligou muitas vezes. Ele disse que chegaria, mas estava numa reunião. Ela revisou a agenda. O plano era reservar a manhã somente para as fotos. Quando chegaram ao local escolhido por Ela, o fotógrafo estava impaciente. Disse que teriam de apressar, porque outro casal o esperava também. Ela tentou justificar e fingiu estar bem, mas sentia o suor deslizar por todo o corpo. Quis perguntar a Ele sobre a maquiagem, mas uma pressão parecia esmagar o seu braço. Ficou imóvel. Ele sorriu para disfarçar. E as fotos eternizariam a véspera do grande dia.

Em casa, olhou para o braço que se coloria de tons entre o vermelho e o roxo. Sentiu-se aliviada por ter escolhido um vestido com mangas de renda. Ela acreditava que o fotógrafo não teria assistido à cena. Recapitulou cada movimento daquela manhã. Antes que Ela se movesse, Ele a puxou com todo o rigor, forjando paixão. Um álbum. Somente isso. Agora, no quarto branco, revia as páginas dos seus dias. Reconheceu o olhar assustador que talvez estivesse sempre a espreitá-la. Parecia que seus membros encolhiam, enquanto a mente expandia. Foi, nesse instante, que viu uma pequena lagartixa atravessar o quarto. A porta insistia em ceder lugar para estranhos confundirem as suas memórias. O pequeno ser fugia, mas não poderia sair dali. A janela estava protegida por uma tela impossível de ser vencida por elas. Além disso, o corredor seria longo, infinito para a hóspede indesejada. Reparou nos movimentos atrapalhados da acompanhante. Havia, ali, um esconderijo. Fez cálculos. Não conseguia medir o tempo das coisas. As mesmas e estranhas vozes. Por que sentia que ninguém servia como interlocutor para as suas dores? Fingiu dormir.

Passou horas à espera da acompanhante. Não estava sozinha. Na parede, faltava um relógio, qualquer coisa com a qual pudesse marcar o tempo. A outra seria mais livre do que Ela, porque não precisava buscar nenhuma resposta. Em qualquer fresta poderia encontrar um abrigo e escapar de uma presença indesejável. Ela, porém, permanecia praticamente imóvel. Quando teria chegado àquele lugar? Viu a amiga se aproximar. Parou no centro do quarto. De um salto, a esmagaria. Teve um arrepio. Sentiu seus pés tocarem o animal gelado. Uma gosma a impregnava. Raspava as solas dos pés e tudo se espalhava pela cama. Gritou por dentro. A amiga levantou a cabeça. Planejaria a fuga? A porta foi aberta novamente e tudo retomou o seu lugar. Mais um frasco. O abismo.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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