Do outro lado do cordão
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Ouça o áudio de “Do outro lado cordão”, de Giseli Barros:
Inesperadamente, colocou as mãozinhas no peito para sentir o coração. Não sabia explicar, mas era o som dele que ouvia nitidamente, ecoando por todos os cantos da noite. Fechou os olhos e ficou concentrado, por longos minutos, no ritmo que o animava. Sentia-se feliz e nem havia motivo para isso. Quando, finalmente, reparou à sua volta, viu que a mãe chorava. O pai parecia alheio ou assim desejava que ela percebesse uma ausência disfarçada. Encanto quebrado, não pôde perguntar a eles o que estava acontecendo dentro do próprio peito.
No dia seguinte, o mesmo aconteceu, como se tivesse marcado horário. Então, reparou que muitas pessoas passavam por ali, bem perto deles, e que alguns traziam uns objetos de tamanhos variados. Na mistura de vozes, notou também que alguma mensagem era trocada de forma animada. A mãe, nesse momento, resmungou e o pai quis brincar. Ela, no entanto, recolheu-se e a noite acabou instantaneamente.
A criança passou a esperar pelas horas intermináveis até ouvir a explosão que vinha do seu peito. Como brincadeira, passou uma tarde procurando qualquer lata vazia sem utilidade e um pedaço de pau. Assim, quando as pessoas começaram a se aproximar, ficou preparado, como se também fizesse parte do grupo. Os outros dois não puderam nada fazer, e aceitaram o que acontecia. Tum… tum… tum. O coração disparava. Queria, além disso, treinar o repique. Reproduzia com a boca os outros sons. Já sabia o refrão e passava as horas dos dias ensaiando. Por fim, o pai ignorou a mulher e arrumou uma lata e um pedaço de colher. Uniu-se ao filho e resolveu contar umas histórias para a criança de um passado bem diferente. Foi então que a criança viu o que era a casa, um imenso telhado de concreto. Quando amanhecia, rapidamente trepidava a casa toda, pois muitos carros atravessavam de um lado para o outro. Dos lados, as paredes eram de lonas. Não havia porta nem janela. A cozinha ficava do lado de fora. Certa vez, numa noite de muita chuva e frio, uma família, enquanto tentava esquentar o leite doado para o filho mais novo, viu o fogo se alastrar, destruindo tudo. A mãe ajudou a juntar os cacarecos daquela gente. E assim ficou decidido que até nas piores estações, o fogo estaria sempre distante deles.
Agora, o grande dia se aproximava. Pediu ao pai para participar da festa. A mãe reprovou com o olhar. O pai justificou olhando de volta. Era a festa do povo, ele tentou dizer. E ela foi preparar a refeição do dia. Sentou-se no tamborete e trabalhou em silêncio. O menino, então, quis pegar o seu tambor improvisado, mas o homem achou melhor irem de mãos vazias. Ficariam próximos para ver o grande cortejo. Sem entender, ainda insistiu, porque havia ensaiado muito bem. O homem, por sua vez, segurou firme aquela mão ainda inocente e caminharam.
As luzes da rua pareciam ainda mais brilhantes com as cores que brincavam diante dos olhos da criança que começava a ver a vida. Carros imensos empurrados, seguindo as instruções de homens nervosos, para evitar qualquer tipo de atraso. Muita gente enfeitada e, em seguida, o grupo que dava o comando da festa. De repente, soltou-se da mão protetora e correu. Coração mudo. O instante suspenso. Impedido de passar, olhou por baixo do cordão. Filas imensas, corretamente perfiladas. Ao sinal do mestre, a multidão se movia em êxtase, mas ninguém ali era como ele. O coração explodia de novo. Suas roupas tinham cores opacas. Viu o pai como se descobrisse algum segredo. Era noite de carnaval.

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Silêncios

Uma conversa despretensiosa
