Do outro lado
Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”
Compartilhe:

Nos dias de felicidade, o tempo corria tão ligeiro, que o abraço era a necessidade de estender o até logo. Agora, no entanto, um álbum de memórias. Não conseguia explicar como tudo cabia em uma caixa bem pequena. Mesmo na era digital, tinha impressas as fotografias mais especiais. Um cantinho charmoso do quarto, fotos na parede, bilhetinhos, um origami. No fim, o lamento de um soneto de Vinicius de Moraes. Quis desfazer de tudo. Mandaria entregar a caixa no endereço que desejava esquecer. Desistiu. Seria uma forma de chamar a atenção do outro. Não poderia demonstrar qualquer sentimento. Queimar tudo seria a decisão mais acertada. Não teve coragem. Colocou o objeto lacrado no fundo do armário. Adormeceu o sentimento.
No trabalho, perceberam as primeiras mudanças. O silêncio. Nada a fazer para vencê-lo. “Tudo tem o seu tempo”, foi o que uma voz amiga sussurrou. Porém, como queria diminuir o tempo do luto, seguiu. Às vezes, numa conversa, começava a contar de um dia bastante inusitado, ou sobre uma viagem, mas interrompia. A vida e o seu curso. Faxinou as redes sociais. Excluiu o contato do aparelho celular. Se o nome fosse mencionado por uma pessoa próxima, limitava-se a sorrir de forma amável. Ninguém duvidaria da sua resiliência. Aos poucos, as mágoas adormeceram também.
Numa noite, organizando objetos aleatórios, encontrou um caderno de anotações. Gostava de escrever. Não sabia explicar, mas havia esquecido hábitos de uma época perdida. Ocupou, então, as horas de folga com o que costumava fazer antes dele. Quis também iniciar um projeto, sentindo o prazer da calmaria da alma. Estava mais próxima das pessoas, embora apreciasse ficar só, quando a programação não lhe agradava. Tranquila, distraiu-se para bem viver. Era o que qualquer um chamaria de cura. Conheceu novos sorrisos. Contudo, qual dos deuses prega peças e por que assim o faz?
Saía de uma loja após o almoço. Trânsito cheio, sinal fechado. Viu, do outro lado da rua, que alguém a observava. Ele fez menção de se aproximar. Ela acenou timidamente. Conversaram sobre nada. Estavam ali sem perceberem o hiato que os separava. Ele a convidou para um café. De repente, sabiam novamente dos horários e hábitos que compartilhavam. Ela sorriu, quando ele fez o mesmo pedido. Riram do garçom que trocava os pratos por apenas um detalhe que os diferenciava. No olhar que trocaram, cabia muita saudade. Talvez fosse possível retomar de onde pararam, ele pensou. Para ela, debaixo da cura, a cicatriz. Aos dois, o sorriso rapidamente encoberto como a fragilidade de uma manhã de verão. Com cuidado, ela retirou a mão da toalha para ajeitar o cabelo. Mesmo ainda sentindo o calor do toque, entendia que, definitivamente, era o último. Despediram-se. Ele ainda mencionou marcar qualquer coisa. Dias tão corridos. Marcariam o mais breve possível. Ela sorriu. “Qualquer dia”, ele disse para si mesmo. E, enquanto a imagem se afastava, ela pensava na caixa perdida, na qual as memórias deveriam ficar. Para sempre.


Anestesia

A árvore
