Certos dias são de silêncio

Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “editoriais”

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Sempre tive dificuldade para entender o abandono de animais e as diversas formas de maus-tratos infligidos a eles. Tenho apreço a quem acolhe, mesmo que momentaneamente, o animal que está com fome, machucado, doente, com frio, ou com medo, amenizando o desamparo daquele ser que também merece cuidado. Cultivo o afeto e o respeito à vida. Dispenso atenção às sutilezas cotidianas, aquelas que, despretensiosas, nos modificam para melhor, porque sendo desinteressadas nos afetam verdadeiramente.

A adoção de um bichinho é vista por mim como uma oportunidade também de autoconhecimento, e fui percebendo isso ao longo do tempo, na medida em que pude conviver diariamente com alguns felinos. Certo dia, uma fêmea, ainda filhote, apareceu em minha casa. Foi alimentada, mas ninguém pensou, de imediato, em adotá-la. Gatos dão trabalho, somem, voltam, entram na casa do vizinho. Essa é a fala comum. Passados alguns dias, decidimos ficar com ela. A casa virou uma festa. Meses depois, vieram os filhotes, e chegou o primeiro desafio, porque nem sempre é fácil encontrar tutores. O resultado a partir de então foi ter sempre mais de um felino conosco.

Pouco tempo depois, passaríamos por um momento triste, o de enfrentar a fúria de quem não gosta desses animais. Há quem considere normal torturar um bicho por considerá-lo inoportuno. E assim começa a engendrar formas de eliminar o ser visto como desprezível. A forma mais usual é o envenenamento. O felino está brincando no quintal, sobe no muro, passa pelo telhado, dorme no sol, algo chama a sua atenção e vai ver o que é. É instintivo, mas não conta com a maldade humana, retorna desesperado e intoxicado. Na maioria das vezes, não há o que fazer. Ver isso mais de uma vez é bastante assustador. Muitas pessoas já sofreram com uma situação semelhante, e devem ter tido também a sensação de impotência, já que não puderam salvar o animalzinho indefeso. E quem tem por companhia um gato ou cachorro, por exemplo, sabe muito bem que um laço afetivo é criado dia a dia, nessa convivência. Talvez seja necessário pensarmos melhor sobre a nossa humanidade e sobre o que nos leva a agir de forma rude. Há limites que nos impedem de fazer o que bem entendemos, mas há quem não dê a mínima importância para isso.

Depois de ficarmos alertas com o que havia acontecido com alguns gatos que viviam conosco, tivemos de lidar com algo ainda mais perverso. Branca nasceu aqui e, quando estava para ter os seus primeiros filhotes, sumiu. Não a encontramos, mas, depois de uma semana, ela retornou suja, magra e sem os filhotes. Ela havia sido queimada. Na clínica veterinária, poucas esperanças. No entanto, não desistimos. Os primeiros dias foram bem difíceis. A queimadura era extensa e não dava para saber se a gata ficaria com graves sequelas. Depois de três meses de cuidados intensos, ela se recuperou, não perdeu a visão, voltou a brincar e a tomar sol no quintal. Com mais algum tempo, teve filhotes.  Conviveu muito bem com Dóris, a sua irmã, e com um gatinho que, desconfiado, foi se achegando, e aqui ficou.

Branca viveu durante quase dez anos. Desenvolveu por fim um câncer de pele, já que um efeito da queimadura foi não ter totalmente restituída a pelugem. Fez tratamento e lutou até o fim. Despediu-se de nós, no fim de uma tarde de sábado. E, praticamente no mesmo instante em que partia, o seu amigo Zungão partiu também. Dormiu no quintal. Dessa vez, não houve a ação de terceiros. Penso, então, nas alegrias que esses seres compartilharam conosco em sua existência tão breve, e também na nossa responsabilidade com a vida.

Dos sons de miados, das brincadeiras diárias que animavam a casa, o silêncio se fez presente por alguns dias. Não foi fácil. Dóris também ficou quieta. Aos poucos, as coisas vão se normalizando. Ela voltou a brincar e a gente se alegra com isso. Observo o seu caminhar em direção ao telhado. O dia está quente e ela gosta de ficar horas e horas nas telhas vermelhas até o entardecer. De cá, torço, fortemente, para que as leis de proteção animal sejam realmente efetivadas e, sobretudo, para que as pessoas olhem com mais cuidado para dentro de si, pois é preciso haver mais compaixão neste mundo.

(*) Áudio do texto da colunista Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana

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